Ainda pode falar sobre João Gilberto? Penso que sim, com a licença dos editores. Se o legado do músico, que morreu no último dia 6, tem se estendido há tantas décadas, creio que podemos discorrer um pouco mais sobre sua influência na arte (ou na cultura, na estética... preencha como quiser).
Já que este é um espaço dedicado a tratar de comida, quero estabelecer um paralelo entre o trabalho de João e o de grandes cozinheiros, grandes artífices – particularmente os da linhagem mais purista. O cantor/autor criou uma linguagem, desenvolveu, difundiu. E, mais do que perseguir o sucesso com discos e shows, ou lançar no mercado derivações de seu próprio estilo, sempre me pareceu que ele só queria mesmo é chegar à perfeição no que fazia.
Tal qual acontece com os sushimen mais detalhistas, seu propósito foi depurar uma síntese, achar a essência, e se superar diariamente. Quem puder assistir ao documentário Jiro Dreams of Sushi (disponível no Netflix) vai me entender: Jiro Oro, hoje com 93 anos, tornou-se uma lenda em Tóquio, e depois no mundo todo, com seu inegociável rigor na confecção dos niguiris. Desde a escolha do arroz, o jeito de lavar, temperar, cozinhar, até a seleção dos peixes, seus cortes, suas montagens. Muitos e muitos anos refinando os gestos, polindo os sabores, buscando sempre a mesma limpidez da mensagem gastronômica. Colocando-se a serviço do ofício.
Ou como ocorre no cotidiano de tantos mestres da cozinha que não conquistaram a projeção dos chefs famosos, mas que seguem diariamente à caça do produto irretocável. Como os padeiros que levantam cedo, selecionam farinhas, zelam pelos processos, respeitam os tempos e as temperaturas, e que almejam somente assar diariamente o mesmo pão – que nunca é o mesmo pão. Consigo imaginá-los verificando a afinação, a acústica do ambiente, dedilhando seu instrumento, coordenando batidas, arpejos, contrapontos, cantos. Numa repetição sem fim, até que se chegue à mais pura interpretação.
A João e a todos os artesãos que nunca se conformam com algo que não seja o melhor, só me resta agradecer.