*Texto por Luiz Américo Camargo, crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
“Você é aquilo que não come”. Ouvi (ou melhor, li) a expressão recentemente, usada pelo pesquisador e escritor italiano Dario Bressanini, um estudioso da cozinha e de seus processos científicos. A frase é mais do que mero jogo de palavras. E mais do que mera provocação ao conhecido “dize-me o que comes e te direi quem és”, de Brillat-Savarin. Ela dá o que pensar por captar um certo espírito do nosso tempo.
Não sei se vocês já observaram. Mas tem sido mais comum encontrar quem se afirme mais por suas restrições alimentares do que por seus gostos efetivos. Um festival de “não como trigo”, “não como queijo”, “não como carne” e por aí vai. Sei que existem problemas alimentares, limitações, dificuldades em digerir este ou aquele ingrediente. Isso é uma coisa. Mas, para um onívoro como eu, é estranho ver tantas pessoas nortearem seus comportamentos a partir de certos dogmas – que acabam se tornando tabus com o peso das verdades religiosas.
Nutrição e gastronomia, não raro, defendem bandeiras diferentes (de um lado, aquilo que faz bem; de outro, o que é gostoso). Muitas vezes, elas se encontram, acham intersecções em suas buscas, o que é muito bom – afinal, imagino que a maioria queira se alimentar direito e ter prazer com a comida. Entretanto, quando modismos e “falsa ciência” (coisas que sempre existiram) começam a pautar os hábitos e a determinar o que pode e o que não pode, é preciso se preocupar.
Vilões do passado, como café, ovo e carne de porco, já foram denunciados, condenados e absolvidos. No momento, os alimentos/produtos algozes são outros (tudo o que contenha glúten ou lactose, por exemplo), e a lista seguirá mudando. Mas retornemos ao dottore Bressanini. O que parecia apenas um simples interdito vai se transformando, progressivamente, em ideologia. Assim, será que o “não” passará a pautar as preferências, as vontades, os cardápios? Será que, um dia, como resposta para um convite para jantar, ouviremos os tais “não como isso, nem aquilo” em lugar de “sim, obrigado, será um prazer”. Eu espero que... não!