A quarta e última temporada de Succession, uma das séries mais premiadas da TV, parecia revelar conforto e até descompromisso de seus produtores como o que era inicialmente apresentado. Acontecesse o que acontecesse, dificilmente a trama sobre a sucessão do inescrupuloso magnata das comunicações e do entretenimento Logan Roy (Brian Cox) deixaria de figurar no panteão daquilo que de melhor já se fez nesta chamada era de ouro da televisão. E foi assim que os bastidores dos negócios de expansão de seu império, que escancaram as idiossincrasias dos três ambiciosos e mimados filhos (Jeremy Strong, o Ken; Sarah Snook, a Shiv; e Kieran Culkin, o Roman), se sucederam em meio a doses de um humor no limite do ordinário ao qual só se recorre quando o jogo já está ganho (a brincadeira sobre Logan ter câmeras em casa e eventualmente poder assistir à “ousadia” sexual do sobrinho Greg, vivido por Nicholas Braun, exibido algumas semanas atrás, é um exemplo).
Mas Succession não adquiriu esse status à toa. O mais-do-mesmo estava posto claramente apenas para preparar terreno visando ao impacto do terceiro episódio desta derradeira temporada. Succession sempre apostou no choque, seja recorrendo à surpresa das viradas narrativas como essa, seja, sobretudo, escancarando a podridão comportamental de sua rica galeria de personagens. Não é que não haja mocinhos; é que todos são tão vilões que às vezes parece uma competição de quem é mais escroto e sem caráter. O paradoxo: quanto pior, melhor para quem assiste.
Sob certo aspecto, somos todos voyeurs de monstruosidades. Alguns mais, outros menos. Só que, para além disso, em Succession as construções dramáticas são de grande sofisticação, revelando coerência mesmo em atos extremos. Em geral o que vemos são humilhações, sempre do mais forte na hierarquia social sobre o mais fraco. Mas ao longo das três primeiras temporadas houve também morte, ocultação de crimes, pai querendo pôr filho na cadeia (e vice-versa) e daí para baixo. Em nome do poder vale tudo, de pisar no outro apenas pelo prazer de pisar ou por estratégia para se tornar ainda mais dominante. E isso é tão universal porque é simplesmente verdadeiro em muitos casos, como o roteiro da série tão bem exemplifica.
É a monstruosidade que revela a humanidade neste Rei Lear da era digital, potencializado, além do humor sarcástico, por uma dinâmica do tipo “tempo real” de apresentação das negociatas. Os três filhos fazem uma proposta de aquisição em uma visita a um grupo de empresários, enquanto, em outro local, o pai age conversando com pessoas próximas a esse grupo a fim de influenciá-lo, e um telefonema ou uma mensagem de texto entre alguém de cá ou de lá faz a situação rapidamente se alterar – são manipulações em série e, de novo, o humano desvelado pelo perverso. Shakespeare na era da fibra óptica, com a devida cautela que a comparação recomenda e a reverência que o Bardo merece.
Logan tem um quarto filho (Connor, vivido por Alan Ruck), que não se envolve tanto assim nos negócios – não está diretamente na luta pela sua sucessão. Carente e mal-amado, tinha tudo para ser um ponto de comoção do espectador, aquele pelo qual “torcemos”. Pode-se dizer algo semelhante de Greg e também de Tom (Matthew Macfadyen), o marido de Shiv que parece carregar uma culpa por ocupar um lugar na hierarquia da família – e da empresa – que não seria naturalmente seu. Ocorre que, em primeiro lugar, o que nesses personagens aparece como fraqueza é na verdade uma fragilidade circunstancial: quando têm a possibilidade de manipular, ou tirar alguma vantagem, a inocência some e eles não hesitam em fazê-lo. A dor de ser humilhado rapidamente dá lugar ao prazer de humilhar. Segundo: os manipuladores mais contumazes são tão fascinantes que Greg, Connor e Tom, especialmente os dois últimos, são apenas uns sujeitos sem graça.
E mesmo eles estão em alguns dos (vários) grandes momentos de Succession. Um exemplo está na obsessão de Connor em se candidatar a presidente dos EUA, o que é tolerado porque é confortável para todos que ele fique entretido com isso e o prejuízo gerado seja “somente” de algumas centenas de milhões de dólares. Outro exemplo é constatar as alterações comportamentais de Tom, que, diante do rei Logan ou de Shiv, a princesa do clero, dá a ver um indisfarçável medo, mas quando está com Greg, que é seu subalterno na empresa, age como um covarde, para dizer o mínimo.
Se há um centro dramático da série pode-se afirmar que é a relação do patriarca com Ken, o filho que foi originalmente preparado para assumir o trono mas não segurou o rojão. Contudo, é a enorme teia de relações tóxicas, que se espelham refletindo e inspirando comportamentos em uma espiral perturbadora, o principal segredo de Succession. Quando o choque é maior pela força dos acontecimentos narrados, caso do citado terceiro episódio desta quarta temporada, e esses acontecimentos são apresentados em uma dinâmica fluida em suas reviravoltas quase instantâneas, a magia fica completa.
Quem nunca viu está perdendo.
Succession
Produção de Jesse Armstrong para a HBO no ar desde 2018. Os episódios da quarta e última temporada estão sendo exibidos todos os domingos na HBO Max desde 26 de março. O encerramento de Succession está previsto para o dia 28 de maio.