Quem nasceu a partir da segunda metade dos anos 1980, acostumou-se a ver Jô Soares comandando talk-shows no SBT e na TV Globo. Vai lembrar dele com o Sexteto cantando sobre croquete, contando piadas sobre redações do vestibular ou tentando entrevistar Hebe Camargo, Nair Bello e Lolita Rodrigues. Porém, antes de virar apresentador, ele brilhava com sua galeria de personagens humorísticos.
Jô Soares, que morreu nesta sexta-feira (5) aos 84 anos, protagonizou os programas Viva o Gordo (1981-87), na TV Globo, e Veja o Gordo (1988-90), no SBT. Embora já tivesse apresentado seus talentos em outros humorísticos — como Faça Humor, Não Faça Guerra e Satiricom —, foi nessas duas atrações que o comediante estrelava esquetes em que satirizava os costumes e a política no Brasil.
Nesse período, Jô emplacou uma série de personagens, como o “muy amigo” Gardelón, as atrizes Vovó Naná e Bô Francineide, o recepcionista Araponga, Zé da Galera e suas ligações para o técnico Telê Santana (“Bota ponta, Telê!”), entre outros. Só que além deles, o humorista deu vida a figuras que serviam de escada para comentários da atualidade.
Por exemplo, o Reizinho governava um reino que, frequentemente, enfrentava problemas similares aos do Brasil. Havia o Zé, operário que ouvia as notícias lidas nos jornais pelo seu amigo Juca (Flávio Migliaccio). Desiludido, ele bradava sarcasticamente: “Ah! Eu quero aplaudir!”.
Vale lembrar o mafioso Dom Casqueta, que via dificuldades da organização criminosa existir em meio à bagunça do Brasil. Outro nessa linha era o boneco Capilé, interpretado por Jô, que era afiado para zombar da política no país.
Entre os personagens que refletem os últimos momentos da ditadura está o Gandola. Tratava-se de um sujeito que chegava aos locais à procura de emprego e repetia o bordão “mas quem me mandou aqui foi o Gandola” como uma forma de carteiraço. Ou seja, uma alfinetada à influência dos militares da época. O quadro acabou sendo proibido, como recordou Jô em entrevista ao site Memória Globo: “As pessoas começaram a se queixar. Uma vez, o Jornal Nacional mostrou uma mulher na feira dizendo: ‘É, aqui mesmo, só chamando o Gandola, senão não se resolve nada e tal’. Depois de um ano e meio, eles sacaram que ‘gandola’ é o nome de uma túnica militar”.
Havia o exilado Sebá, que sentia saudade do Brasil, mas que desesperava-se ao receber notícias do país pelo telefone. Outro personagem era o argentino General Gutierrez, que se mudou para a Bahia para escapar da Justiça pelos crimes da ditadura no país vizinho e passou a se chamar Severino Silva. Aliás, outra sátira sobre final de ditadura estava representada em um militar, que escondia seu uniforme sob uma capa de chuva e repetia o bordão “revanchismo não!”.
Para o ator João Carlos Castanha, com vasta atuação na comédia, Jô Soares era especialista em dosar humor com política:
— Ele sabia atingir as pessoas, transformando em piada os temas da época. Ele começa com o Viva o Gordo no final da ditadura, abordando assuntos que eram proibidos e conseguindo tocar as pessoas.
O comediante André Damasceno observa que Jô trabalhava bastante com um humor emergente, refletindo o que estava acontecendo na política ou no Brasil naquele momento.
— O presidente fazia uma ação, e o Jô satirizava ou ia em cima da notícia. Para época, era boa essa atualidade, mas se assiste hoje não entende — pondera.
Tanto Castanha quanto Damasceno apontam que Jô Soares está no mesmo panteão de humoristas como Chico Anysio e Costinha. No entanto, Damasceno observa que Anysio fazia um humor mais atemporal e com mais caracterização, enquanto Jô se limitava a pequenas mudanças no figurino.
Capitão Gay
Um dos personagens de maior destaque de Jô Soares era o Capitão Gay, um super-herói que tinha como parceiro Carlos Suely (Eliezer Motta) e defendia as minorias e os oprimidos. O jingle do personagem chegou a ser gravado em disco compacto, em 1982.
Contudo, há opiniões um tanto mistas sobre o Capitão Gay. Nas redes sociais, houve comentários ressaltando “a ditadura do politicamente correto cancelaria esse personagem”, ou afirmando que “há 40 anos, gays só existiam se fosse como objeto de ridicularização”. Há quem diga que "foi precursor numa época que ser gordo ou gay era não assunto”, ou que “seria alvo de conservadores hoje em dia”.
— Eu não via nada de mal no Capitão Gay, achava muito engraçado. Cada um vê da maneira que quer — salienta Castanha. — Ele fazia muitos personagens que, realmente, se interpretasse agora seria sacrificado em praça pública. Hoje em dia está uma coisa muito chata, em que se tem que ter meias palavras ou andar nas pontas dos pés. Caso contrário, te crucificam.
Entre outros personagens, o ator lembra de Dalva Mascarenhas, que era citada como a “feminista de bigode”. Outra figura questionável era o dentista que assediava as pacientes e exclamava “Bocão!”.
— Todos os humoristas daquela época seriam cancelados pelas redes sociais hoje em dia. Tu imaginas o Costinha? Os Trapalhões também brincavam com tudo. Todos eles seriam cancelados. Na época, o pessoal não tinha essa noção — justifica Damasceno.
De qualquer maneira, Jô Soares deve entrar para história como “pai de personagens icônicos” e de “programas de televisão inesquecíveis”, como frisa o ator e colunista de GZH Zé Victor Castiel:
— Jô morreu sendo lembrado, principalmente pelos mais jovens, como um apresentador, embora essa tenha sido a maneira pela qual um dos maiores humoristas do mundo pudesse demonstrar sua última faceta entre todas as suas aptidões artísticas.