É fácil matar — o difícil é não ser pego. Por mais de um século, a ideia de desvendar crimes por meio de inteligência, dedução ou evidências encanta o público, seja na literatura, cinema ou, em uma das grandes febres dos dias atuais: séries de TV. Exemplo disso é a renovação para a 18ª temporada de NCIS e a 22ª de Law & Order: Special Victims Unit (ambas estrearam no Brasil nesta terça-feira, às 22h, nos canais pagos AXN e Universal TV, respectivamente).
Os dramas já são dois dos mais longos seriados da televisão norte-americana, ultrapassando em número de temporadas fenômenos como Plantão Médico (1994-2009), Dallas (1978 - 1991) e Bonanza (1959 - 1973). Eles ficam ao lado de outros gigantes do gênero policial, como CSI: Crime Scene Investigation (2000-2015) e a versão original de Law & Order (1990-2010). Mas o que explica tamanha longevidade?
Para começar, a capacidade de transpor com maestria para a tela o espírito dos romances policiais: do mistério inicial à descoberta do culpado, passando por uma miríade de provas e suspeitos, não é preciso mais do que 43 minutos. Ou seja, em menos de uma hora é traçado o mesmo tipo de caminho criado por Edgar Allan Poe, ainda em 1841, com Os Assassinatos da Rua Morgue, considerado o primeiro conto a apresentar este formato de enigma a ser resolvido por um detetive de muitos talentos.
E o que os últimos 180 anos provaram é a eficácia dessa fórmula, que transformou a escritora Agatha Christie em um dos maiores sucessos editoriais da história e fez de Sherlock Holmes um ícone tão grande que segue vivíssimo muito após seu criador, Arthur Conan Doyle. Mesmo neste ano, a série Lupin — cheia de referências e reverência aos romances do francês Maurice Leblanc — se tornou um dos maiores sucessos da Netflix e fez disparar a venda de livros de Arsène Lupin (o anti-herói dos romances policiais).
A criadora do portal Literatura Policial (literaturapolicial.com), Ana Paula Laux, analisa que esse sucesso está diretamente ligado à satisfação que o formato proporciona:
— A questão do enigma, de estar prestes a descobrir algo misterioso, é muito convidativa para o leitor, a surpresa de se espantar com um final pouco esperado, e por fim a sensação de justiça feita — reflete ela. — Nestes livros, é comum que o culpado seja de alguma forma punido e que a justiça seja feita, o que nem sempre vemos na vida real. Dá um certo alento ao público quando a ordem está sendo restabelecida, e que o bem está vencendo o mal.
Quanto mais a sociedade pende para a injustiça, mais forte pode ser a busca por produções que retratem uma realidade melhor. Como explica a mestre em Comunicação Social pela PUCRS Camila Furuzawa, cuja dissertação abordou as séries policiais, o sucesso desses seriados pode ser resultado de um "conforto inconsciente" propiciado por acompanhá-los:
— Em uma sociedade que se sente cada vez mais insegura e desconfiada das instituições, busca-se refúgio e realização através de heróis, que muitas vezes fazem o papel de anti-heróis, mas que fornecem ao seu público uma compensação simbólica.
Heróis
Não faltaram mocinhos nem tão bons na televisão pelos últimos tempos, desde um assassino em série, em Dexter, até o próprio diabo, em Lúcifer. Mesmo eles, no entanto, para encarnar a luta por justiça, tinham na tela o tipo de carisma equacionado para conquistar o público. Aliás, não à toa, as séries mais longevas do gênero conseguiram manter seus protagonistas, mesmo com inúmeras mudanças no elenco.
As investigações de assassinatos e desaparecimentos na marinha dos EUA, foco de NCIS, seguiram pelos últimos 18 anos sob o comando de Gibbs (Mark Harmon). Enquanto isso, Olivia Benson (Mariska Hargitay) se manteve como a face mais reconhecível de SVU, lutando pelas vítimas de crimes sexuais contra seus agressores. Tivesse algum deles abandonado seu papel — como fez William Petersen, o Grissom de CSI — é provável que a história dessas duas produções fosse outra.
Ana Paula ressalta, também, que os valores desses protagonistas (e sua própria aparência) são um reflexo da sociedade. Os detetives e policiais que faziam sucesso há 10, 20, 30 anos, passaram a ser observados de forma diferente a partir das lentes do presente, e as produções encontraram novos caminhos:
— Alguns personagens policiais envelheceram muito mal, como é o caso dos durões e ultraviolentos Dirty Harry (vivido no cinema por Clint Eastwood) e Paul Kersey (Charles Bronson – Desejo de Matar) — comenta a jornalista. — Já o personagem Lupin é um exemplo da preocupação atual com a representatividade étnica. Na literatura, ele é um homem branco, de cartola e monóculo. Na série, o ator Omar Sy, que é negro, brilha no papel. Penso que veremos esse tipo de movimento cada vez mais nas séries e filmes policiais.
Essa reinvenção das séries policiais se tornou questão primordial para os produtores após o crescimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nos Estados Unidos e mundo afora. Em meio aos protestos antirracistas, cujo estopim foi o assassinato de George Floyd sob custódia da polícia, surgiram vozes de todos os lados questionando o papel de uma mídia que muitas vezes glorifica violência policial e alimenta estereótipos de raça, classe e gênero ao retratar criminosos.
Os dois dramas garantiram que mais reflexões sobre o papel da polícia vão entrar em seus roteiros, com Law & Order: SVU partindo para a discussão sobre racismo estrutural desde o episódio inaugural da nova temporada. Para a pesquisadora Camila Furuzawa, é uma questão de tempo até que a maioria das séries encontre um tom mais próximo da discussão das ruas:
— Acredito que essa reinvenção será inevitável porque essa imagem do policial retratada pela série se tornará implausível aos olhos do público, que passará a rejeitar narrativas que se distanciam muito da realidade.
Serviço
- Law & Order: Special Victims Unit, 22ª temporada, terça-feira, 22h, no Universal TV
- NCIS - Investigação Naval, 18ª temporada, terça-feira, 22h, no AXN