Roger Ackroyd foi encontrado em seu gabinete com um punhal enterrado pouco abaixo da nuca. Seriam necessárias mais de duzentas páginas para um pequeno, arrogante e brilhante detetive belga descobrir quem o matara. Mas valeria a pena: a solução do mistério escreveria tanto o nome do investigador, Hercule Poirot, quanto de sua criadora, Agatha Christie, para sempre na história da literatura policial, graças a um dos finais mais ousados visto até hoje.
Além de ser uma das joias na coroa da Rainha do Crime, cujo 130º aniversário seria comemorado nesta terça-feira (15), O Assassinato de Roger Ackroyd, de 1926, foi um dos primeiros livros da escritora a ser traduzido para o Brasil. E foi em Porto Alegre que ele desembarcou pela primeira vez, graças à Livraria do Globo.
Mais do que porto-alegrense, a primeira edição nasceu em 1933 com uma tradução de Heitor Berutti repleta de "regionalismos gaúchos", que davam certa "cor local à obra de Christie", conta Vanessa Lopes Lourenço Hanes, doutora em Estudos da Tradução pela UFSC e docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), em seu artigo Desvendando um Mistério: A Canonização de Agatha Christie no Brasil Durante os Séculos 20 e 21.
A pesquisadora explica a GZH que na primeira edição brasileira da obra existiram "claros sinais de domesticação do texto". Isto é, palavras traduzidas que buscam se aproximar do cotidiano do leitor, como se tentasse "esconder" o fato de o livro ser uma tradução:
— No caso de O Assassinato de Roger Ackroyd isso aparece, por exemplo, já no título do primeiro capítulo, "Quando o Dr. Sheppard almoçava". No texto-fonte, tratava-se de um café da manhã, e não almoço. E o texto brasileiro cai em contradição logo depois, pois o médico (e narrador) menciona ter chegado em casa logo após as nove, claramente sentando-se para o seu café da manhã. Mas a refeição servida é composta por ovos e bacon.
É também logo na primeira página que surge o "gauchês" citado por Vanessa.
— A irmã do personagem o ouve chegando em casa e pergunta: "É tu, Jaques?". O tu é usado em lugar do você, mas a conjugação do verbo ser é mantida na terceira pessoa, algo que até onde sei é uso de língua típico dos gaúchos — destaca ela.
A pesquisadora conjectura que, uma vez que o tradutor Heitor Berutti era um jornalista, com texto reconhecido, e Agatha Christie ainda era praticamente uma desconhecida no país, sua tradução não deve ter sido alvo de "uma revisão minuciosa".
Agatha, porém, cresceria em importância no decorrer dos anos até se tornar a autora mais vendida de ficção da história — o Guinness World Records estima dois milhões de cópias comercializadas de seus 85 livros em 44 idiomas. E, pelo menos no Brasil, a Livraria do Globo teria tudo a ver com essa popularização.
Coleção Amarela
Fundada ainda em 1883, por Laudelino Pinheiro de Barcellos, a Livraria do Globo se tornou uma editora de renome a partir da década de 1930, durante a primeira administração do gaúcho Getúlio Vargas. Frequentador daquelas estantes de livros na Rua da Praia, o presidente indiretamente deu fôlego ao mercado editorial brasileiro com suas políticas nacionalistas, que taxavam bens importados — incluindo livros.
Ao mesmo tempo, a censura vigente — especialmente voltada à produção nacional — fez com que as editoras se voltassem à tradução de obras estrangeiras, vistas como "inofensivas". Por aqui, surgiria a Coleção Amarela, com 158 volumes de romances policiais publicados entre 1931 e 1956, sendo 11 títulos de Agatha Christie.
A fascinação com os mistérios da escritora britânica rendeu até uma anedota em um dos empreendimentos da Livraria, a revista mensal de literatura A Novela, com editoria e coordenação de Henrique Bertaso e Erico Verissimo. A partir de dezembro de 1936, o periódico passou a publicar uma versão serializada de Um crime no Expresso de Stambul, de Sir Ronald MacMunn. Ao mesmo tempo, a publicação promoveu o concurso “Quem matou o gangster Cassetti?”, que premiaria ao leitor descobrir o desfecho da novela.
Eis que, cinco edições mais tarde, com o capítulo final da obra, veio também uma reviravolta: "Temos o prazer de dar aqui o resultado do grande concurso que esta revista promoveu em torno do romance Um crime no Expresso de Stambul, de Sir Ronald MacMunn. Preliminarmente devemos informar que este livro na realidade se chama Um crime no Expresso do Oriente, foi escrito por Miss Agatha Christie e tem como figura central o seu famoso detetive Hercule Poirot. Fizemos a 'camouflage' com o intuito de evitar que, procurando ler o original do citado romance de Miss Christie, os concorrentes chegassem à solução certa sem dar trabalho às suas 'células cinzentas', na expressão de M. Poirot".
O caso é narrado pela historiadora Denise Bottmann e o mestre em Estudos de Literatura pela UFRGS Sérgio Karam em um artigo sobre a Coleção Amarela. Como eles destacam, a edição verdadeira de Um Crime no Expresso do Oriente chegaria ao público brasileiro apenas em 1940, após um atraso da Livraria do Globo.
Assim, apenas nesta primeira década, a editora lançou no Brasil seis títulos de Agatha: O Trem Azul (1933), O Assassinato de Roger Ackroyd (1933), A Casa Perida (1935), As Quatro Potências do Mal (1939), Um Crime no Expresso do Oriente (1940) e O Caso dos Dez Negrinhos (1942) - alguns títulos foram renomeados em edições posteriores.
— Mais cedo ou mais tarde, diante da proeminência de Christie também no exterior, creio que ela chegaria sim ao país. Mas a Livraria do Globo sem dúvidas desempenhou grande papel para que esta chegada se desse bem cedo, em última instância colaborando definitivamente para o grande fenômeno que Christie se tornou e é ainda hoje em território brasileiro, basicamente com retraduções publicadas a cada ano — destaca Vanessa.
Atualmente
A partir do anos 1940, o selo da Globo abandonou o título de Livraria e passou a se chamar oficialmente Editora. Dos anos de ouro à decadência, o empreendimento foi vendido, em 1986, às Organizações Globo, tornando-se o que hoje conhecemos como Globo Livros.
Na nova editora, a obra de Agatha Christie seguiu sendo procurada, com mais de 400 mil volumes vendidos apenas nos últimos cinco anos, dentre os 12 títulos da britânica disponíveis no catálogo. O diretor da Globo Livros, Mauro Palermo, ressalta que a autora tem leitores de todas as idades, apesar do temor que pode existir perante os "clássicos".
— É uma autora muito especial e temos a honra de publicar com exclusividade seu primeiro romance, o centenário O Misterioso Caso de Styles. Para entender a genialidade da autora, ela conseguiu a proeza de criar o detetive mais famoso do mundo já no seu primeiro romance.
Mesmo com o sucesso editorial da britânica, Palermo destaca que os romances policiais não estão tão em voga no país atualmente:
— Em geral, esse gênero não é apreciado por aqui, mas a Agatha Christie será sempre a honrosa exceção.
A Globo Livros, no entanto, não é a única casa dos detetives Hercule Poirot e Miss Marple no Brasil. A L&PM Editores, também da Capital, tem um rico catálogo de Agatha, com dezenas de obras publicadas em versão de bolso, além de coletâneas especiais.
— Ter livros da autora no catálogo é de grande importância, e não apenas pelas vendas em si. Também é importante pelo caráter de formação de leitores que a literatura da Agatha Christie tem. Muitas pessoas começam a ler a autora no final da infância e na adolescência; leem um, dois, três, quatro, dez livros... Quer dizer, é uma autora que consolida para o leitor em formação a ideia de prazer de ler, e depois dela, o leitor sai em busca de outros títulos e outros autores — enfatiza Caroline Chang, editora da L&PM.
Mais gaúchos
Outro selo responsável pelo legado de Christie no país é a HarperCollins, que assumiu o catálogo da Nova Fronteira a partir de 2016. Depois de algumas reedições das traduções dos anos 1960, 1970 e 1980, a partir deste ano, a editora iniciou uma nova coleção dos livros de Agatha, com novo projeto gráfico, capas inéditas e novas traduções.
De forma simbólica, quase um século desde as primeiras edições da Livraria do Globo, três gaúchos estão entre os tradutores das novas versões: Érico Assis, Luisa Geisler e Samir Machado de Machado.
As traduções de Érico Assis, inclusive, são lançadas ainda nesta terça-feira (15), celebrando o aniversário de Agatha. Chegam às livrarias Noite Sem Fim e Morte no Nilo, que tem uma adaptação cinematográfica com Kenneth Branagh e Gal Gadot, prevista para o final de outubro.
Luisa Geisler, cuja as traduções de Punição Para a Inocência e Os Quatro Grandes já estão publicadas, conta à reportagem que, até na hora de traduzir, os crimes de Agatha se tornam um irresistíveis:
Os mistérios são muito bem pensados. Não há outra maneira de explicar: é tudo bem amarrado, não sobra ou falta detalhe ou informação
LUISA GEISLER
Escritora e tradutora
— Os mistérios são muito bem pensados. Não há outra maneira de explicar: é tudo bem amarrado, não sobra ou falta detalhe ou informação. Eu mesma ao longo da tradução ficava tão ansiosa que parava e ia atrás do final, porque a ansiedade não estava me permitindo trabalhar com a qualidade que queria.
Já Samir Machado de Machado, tradutor das novas edições já publicados de Um Corpo na Biblioteca e Um Mistério no Caribe, frisa que apesar do estilo notoriamente simples e direto, o texto de Agatha merece uma leitura atenta:
— Há muita coisa interessante nas entrelinhas que podem se perder numa leitura desatenta: as citações a crimes reais de sua época mostram que ela era uma leitora atenta das páginas policiais. Disso, Christie tira um macabro senso de ironia que conduz as histórias com certo humor perverso, provocando calafrios tanto quanto divertindo o leitor com crimes exageradamente elaborados.
Até esse exagero, no entanto, pode acabar soando realista, reflete o tradutor:
— Quando lemos sobre casos como o da pastora Flordelis, as tramas de Christie com seus planos complexos de assassinato, envenenamentos misteriosos e envolvimentos amorosos secretos parecem agora bem menos novelescos.