No anonimato em que preferiu manter sua identidade, a misteriosa italiana que escreve sob o pseudônimo de Elena Ferrante gerou abalos sísmicos na literatura nos últimos anos. Desde o sucesso de sua Tetralogia Napolitana (2011—2014), que vendeu mais de 12 milhões de exemplares mundo afora, muitos se perguntam: o que explica a atração por suas histórias?
Com a chegada às bancas de mais uma aventura em Nápoles, A Vida Mentirosa dos Adultos (Intrínseca, 432 páginas), GaúchaZH convidou algumas leitoras e fãs da italiana para explicar tal febre. Da jornalista Cláudia Laitano até a ilustradora Talita Hoffmann, confira a seguir os relatos de quem se apaixonou por Elena Ferrante:
Cláudia Laitano, jornalista e escritora
“Costumo dizer que livros são como amores e amizades: o que apaixona alguns pode deixar outros indiferentes. Como leitora apaixonada pelos livros (e até pelas entrevistas!) de Elena Ferrante, já ouvi relatos de gente que não passou das primeiras páginas da Tetralogia Napolitana. (Vai entender….)
Entre os outros tantos que compartilham comigo a paixão pela escritora, os motivos são muitos e diversos, adaptados ao gosto e ao repertório do leitor — de muito jovens a muito maduros. Isso é possível porque há melodrama e grande literatura no que ela escreve, violência e superação, local e universal.
Ferrante mergulha naquilo que nos torna o que somos — o lugar de onde viemos, a família que tivemos, os amores, os amigos, as frustrações — para sair de lá com a matéria viva da experiência humana. Durante séculos, a literatura foi dominada por homens. Lendo Ferrante, percebemos que aquela era apenas parte da história e muito ainda está para ser contado sob outros pontos de vista.”
Maurem Kayna, engenheira, escritora e mediadora do grupo de leitura Leia Mulheres de Porto Alegre
“Ferrante entrou na minha vida de leitora como um vendaval capaz de revirar memórias, causar o espanto do reconhecimento e encantar com a força do seu texto. Certamente ela não foi a primeira autora a apresentar uma infância não glamourizada, mas ela fez isso de uma forma muito contundente para todas que cresceram no tempo em que o castigo físico era coisa banal ou em lugares onde a pobreza impunha escolhas entre educação e subsistência.
Depois do contato com o primeiro livro da Tetralogia Napolitana, lá no começo de 2016, quando o lemos do Leia Mulheres POA, cada lançamento dela em português passou a ser aguardado com ansiedade. A forma como ela narra os tumultos humanos nos atravessa de certezas e ambiguidade com frases limpas e certeiras. Não tenho nenhuma curiosidade sobre sua identidade, mas sua maestria na escrita me insufla admiração e uma boa dose de inveja.”
Fabiane Secches, autora do livro Elena Ferrante: Uma Longa Experiência de Ausência
“Acredito que uma das razões pelas quais Ferrante tem encantado diferentes leitores é a natureza híbrida de seu projeto literário — a forma como se filia à "alta literatura" enquanto também flerta com a literatura popular, o que ocorre principalmente na Tetralogia Napolitana. E também o fato de que captura de maneira perspicaz algumas questões próprias do nosso tempo, a que recorre sem simplificações. Ainda que utilize esquemas narrativos tradicionais, Ferrante os atualiza e ressignifica a partir de tensões muito contemporâneas.”
Talita Hoffmann, ilustradora do livro Elena Ferrante: Uma Longa Experiência de Ausência
“Gosto do jeito que a Elena Ferrante constrói as cenas, juntando sequências de pensamentos lógicos e as quebrando com elaborações surreais. É difícil dizer, na voz da personagem, o que é real e o que é imaginado, o que é impressão. Ela parte de pistas que as personagens deixam para desenvolver as histórias, e vai sobrepondo memórias a essas pistas. Tem sempre um mistério pairando sobre o que aconteceu, e o leitor acaba ocupando uma posição quase que de detetive. A autora nos mostra também um lado mais violento das relações íntimas, que ressoa em um lugar incômodo e familiar.”
Diana Corso, psicanalista e escritora
“Ferrante é mestra em desvelar os bastidores femininos, assim como das relações entre as mulheres, quer sejam entre mães e filhas, quer entre amigas. São raros os romances onde as mulheres sentem-se de fato traduzidas, onde há uma voz feminina tão explícita na narrativa: nem sempre somos os seres voltados ao amor ao outro, ao amor erótico, ao amor materno, que se espera de nós, boa parte do nosso trabalho psíquico é de construção de identidade, de inspirar-se umas nas outras, de ficarmos nos medindo entre nós e buscando esse amor fraterno que é essencial. Qualquer adulto que tiver convívio com meninas pequenas verá como começamos cedo a sofrer pelo amor das amigas.
Na Tetralogia Napolitana fica claro, como não lembro de ter lido antes com tanta profundidade, como estamos mais interessadas no amor por uma (a melhor) amiga do que nos vínculos eróticos: Lila e Lenu tiveram vidas cheias de amores e realizações, mas nunca tiraram os olhos uma na outra. Toda a trama, e Ferrante é uma grande roteirista, as enlaça, não importando o que fizessem e aonde estivessem.”