Sem filmes em cartaz, com teatros fechados e shows suspensos, a cultura não ficou no escuro no Rio Grande do Sul durante a pandemia de covid-19: ela apenas migrou para outro local. Um estudo da Universidade Feevale aponta que 62,8% da população gaúcha aumentou seu consumo audiovisual nas plataformas digitais durante o isolamento.
O mapeamento, intitulado Covid-19 e os impactos na Indústria Criativa do Rio Grande do Sul, é uma iniciativa de pesquisadores do Mestrado Profissional em Indústria Criativa da instituição. Além de mostrar este aumento no consumo em meio à pandemia, os resultados indicam que não foram poucas horas em frente às telas.
Mais de um terço dos entrevistados (38%) dedicou pelo menos seis horas por semana ao segmento; outro terço (33,1%), permaneceu ligado em produções audiovisuais de oito a 14 horas por semana. Extrapolando os números, é como se pelo menos 70% da população do RS tenha dedicado ao menos um dia inteiro para filmes e séries a cada mês nos últimos meses. Sem dormir.
Mas essa, é claro, não é a forma usual de assistir a uma série no streaming. A menos que você esteja no seleto grupo dos maratonistas. O resto do público tende a ser bastante convencional, mesmo quando não está sintonizado nos canais de televisão tradicionais:
— O “horário nobre” ainda se mantém! O horário de maior consumo de conteúdo acontece entre 19h e 23h — destaca a pesquisadora em consumo digital Vanessa Valiati, professora da Universidade Feevale e uma das coordenadoras do estudo.
Pelo menos 60,3% dos participantes garantiram que esse era seu horário preferido para assistir ao conteúdo digital. E as convenções também seguiram nos dispositivos usados para conferir às atrações: smart TVs aparecem em primeiro (39,7%), com quase o dobro de audiência de notebooks/computadores (20,7%) e smartphones (19,8%).
Nas telonas ou telinhas, os favoritos do público seguem sendo filmes, séries e documentários. Eles tendem a consumir esses produtos em serviços pagos, como a Netflix (86,4%) e Amazon Prime Video (30,6%), além de híbridos, como é o caso do YouTube (47,1%), com conteúdo grátis e mediante pagamento.
Coordenaram a pesquisa os professores Cristiano Max Pereira Pinheiro, Vanessa Valitati e Maurício Barth. A iniciativa conta com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e do governo estadual, a partir do programa RS Criativo e da Secretaria de Cultura do Estado.
Ao todo, foram realizados quatro questionários (audiovisual, música, lives e jogos digitais), que circularam de forma digital entre os dias 30 de junho e 4 de setembro, com 248 respondentes. Uma segunda fase do estudo deve trazer entrevistas individuais, assim como a produção de um e-book interativo sobre o tema.
Consequências
Como esses números vão refletir na produção audiovisual gaúcha ainda é incerto. A roteirista e diretora Gautier Lee, parte do coletivo Macumba Lab, acredita que o aumento no consumo vai gerar, a longo prazo, um aumento na demanda de novos produtos. E eles não necessariamente vão precisar estar em um dos "grandes" serviços de streaming.
— As pessoas não estão focando somente no que pode ser encontrado na Netflix ou no Prime Video ou no Globoplay. Webséries, que geralmente estão disponível no YouTube ou no Vimeo, também ganharam bastante visibilidade e alcançaram mais pessoas — ressalta a cineasta. — Essas pessoas talvez não procurassem essas opções antes, mas depois de seis meses de isolamento social, elas decidiram expandir o leque de opções.
As pessoas não estão focando somente no que pode ser encontrado na Netflix ou no Prime Video ou no Globoplay
GAUTIER LEE
Roteirista e diretora
E os consumidores não foram os únicos afetados pelo novo cotidiano imposto pela pandemia. Gautier comenta que a busca por roteiristas vem aumentando durante os meses de isolamento, mas em uma nova rotina:
— Como ainda não é seguro fazer aglomerações em sets de filmagens, há um foco bem grande em escrever novos produtos agora, em salas de roteiro virtuais, para serem gravados no próximo ano. E essas salas virtuais têm fomentado produções no país inteiro, inclusive fora do eixo RJ-SP, pois percebeu-se que é possível trabalhar com pessoas que estão geograficamente distantes.
As perspectivas para o setor, no entanto, não são todas positivas. Gabriel Faccini, que é roteirista, diretor de cena, ator e produtor executivo na Verte Filmes, destaca que, sem apoio dos governantes, é difícil imaginar um futuro positivo para o audiovisual local:
— Infelizmente, nos últimos anos estamos vendo um desmonte deliberado das políticas públicas voltadas para o setor audiovisual. A pandemia só agrava essa situação. Sem um investimento em distribuição, formação de público e também na consolidação de uma indústria do audiovisual, não consigo ver este aumento no consumo se refletindo no consumo específico de conteúdos locais.
Para Faccini, o momento é favorável apenas para as produtoras com conteúdos prontos para serem licenciados, uma vez que o setor ficou paralisado por meses desde a chegada do coronavírus ao Brasil. Mesmo a retomada deve ser em um ritmo mais lento, visto os novos protocolos de segurança na hora das gravações.
Já disponível
Mesmo que aos poucos, no entanto, conteúdo local chega às grandes plataformas de streaming nacional. Em agosto, o documentário O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes, estreou no Globoplay. A obra conta a história do jovem operário negro Júlio César de Melo Pinto, que foi executado pela Brigada Militar, nos anos 1980, em Porto Alegre.
Exibido ainda em 2017 no 45º Festival de Cinema de Gramado, pelos últimos três anos a produção rodou o país em um processo de distribuição em salas de cinema, antes dos cinemas cessarem sua programação em março.
A chegada da pandemia, então, interrompeu os planos e foi preciso buscar alternativas para manter tanto esse diálogo, quanto as reflexões iniciadas pelo filme, vivas. Foi então que surgiu a oportunidade de ter o título no Globoplay.
— Se a gente pensar no público que está atingindo no streaming, em três meses é maior que o público que a gente atingiu em um ano nas salas de cinema — reflete Camila.
Ela não é a única a perceber o poder das plataformas digitais. Na Verte Filmes — cuja as séries Alce & Alice e Necrópolis estão disponíveis na Netflix —, o impacto também é visto.
— O público das nossas produções, na sua imensa maioria, assina a Netflix e muitos sequer tem TV à cabo em casa — conta Gabriel.
Uma vez na plataforma, ainda há desafios: como cativar o público? Como se destacar em catálogos cada vez maiores? Como ter mais visibilidade? Um espaço maior para produções locais, contudo, é um primeiro passo importante.
Gautier acredita que uma vontade de descentralizar narrativas e criar uma representação mais certeira do que é o Brasil e o audiovisual brasileiro já está no ar. Camila compartilha a visão, e ainda afirma que é um reflexo direto do público:
— A gente está vivendo um momento de reestruturação do nosso audiovisual e um momento em que a gente compreende que a sociedade é muito diversa. Ela está exigindo se ver na tela e saber quem são as pessoas que estão produzindo. A sociedade está querendo consumir e consome aquilo que lhe agrada. Por isso o streaming está cada vez com conteúdos mais diversos, com esse multiplicar do Brasil.