“Apenas um episódio por semana — wft? Eu queria maratonar! Uma estrela por isso! Isto é como a droga da televisão, esperar a semana toda apenas para ver seu show favorito por 4o minutos ou uma hora! Uma estrela por isso!”, esbravejou Gary Bansal na seção de comentários da segunda temporada da série The Boys, do Amazon Prime Video. Outros 155 usuários concordaram com a indignação dele.
Com 1,221 reviews ao redor do mundo, os novos episódios da série mantêm uma média alta no site da própria Amazon: 3,9 estrelas, em uma escala até cinco. Ainda assim, 23% dos usuários deram apenas uma estrela para a produção, a maioria concordando com a lógica de Gary: "Eu pago por on demand, não semanal", "Liberem a temporada completa", "Ótima série, porém a Amazon a arruinou com o lançamento", são algumas das observações. Um usuário, especificamente, apontou: “Streaming é sobre binge-watching” (assistir sem parar ou maratonar, em tradução livre).
As maratonas, porém, podem estar com os dias contados — especialmente para conteúdo inédito. Em entrevista ao Collider, o showrunner Eric Kripke explicou que a decisão de lançar os episódios aos poucos foi dos produtores e que a Amazon apenas concordou com a ação. Ele se justificou:
— Nossa sensação é que quando todos os oito episódios vão ao ar de uma vez, torna-se uma maratona frenética. As pessoas queimam tudo em uma ou duas semanas. Há uma quantidade intensa de atividade, e então meio que desaparece.
Não é apenas uma sensação. Dados do Google Trends, por exemplo, que mapeiam o interesse por diferentes séries ao longo do tempo, mostram claramente o efeito do binge-publishing (a temporada completa estreando no mesmo dia). Ao observar os últimos 12 meses, produções como Grey's Anatomy e Supernatural (com exibição semanal), mantêm um desempenho constante. Já um dos maiores lançamentos da Netflix, Dark (com binge-publishing), teve apenas um grande pico em junho, depois de meses de silêncio, e rapidamente retornou ao patamar menor de interesse. No novo formato, The Boys gerou um pico, com o primeiro episódio, e vem mantendo um interesse mais longevo.
E o fenômeno não é novidade para as companhias de streaming. A Disney+, com chegada marcada para 17 de novembro no país, vem lançando séries originais, como Star Wars: The Mandalorian, semanalmente. É o mesmo caminho adotado pela Apple TV+ e Hulu, nos Estados Unidos. Os produtores, no geral, não querem "queimar seu conteúdo" na largada.
O presidente da programação da HBO, Casey Bloys, chegou a questionar o que poderia levar uma empresa a desistir dos lançamentos semanais:
— Por que você desistiria dos episódios semanais? — declarou em entrevista ao Los Angeles Times, ainda em 2019 — De ter pessoas unidas assistindo e conversando sobre esses programas? De dar ao público várias chances de se conectar?
E a HBO, de fato, não tem muitos motivos para mudar sua estratégia. Afinal, em plena ascensão dos serviços de streaming, é dela o maior seriado da última década: Game of Thrones. A temporada final, transmitida aos domingos em 2019, dominou o assunto do mundo inteiro por pelo menos seis semanas. Não faltaram questionamentos do público nos sete dias que separaram os episódios, teorias sobre o que estava por vir, memes com os deslizes da série e, apenas nos Estados Unidos, 13,6 milhões de pessoas sentaram em frente à televisão no horário marcado para descobrir o destino de Westeros ao vivo.
Disruptivo
A HBO, no entanto, não surpreende ninguém por seus lançamentos semanais, muito menos os enfurece. Fundada em 1975, a empresa tem os dois pés na televisão tradicional. É natural ao público que Big Little Lies, Watchmen e Lovecraft Country sejam lançadas aos poucos, tanto quanto o lançamento periódico de Game of Thrones ou Família Soprano foi natural.
Quando a Netflix deixou para trás a ideia de servir apenas como uma locadora online para séries e filmes antigos, contudo, e se lançou como uma produtora de conteúdo, ela fez questão de se colocar não como mais uma opção para a televisão, mas algo completamente disruptivo. Assim, a primeira temporada do drama político House of Cards chegou na íntegra ao público em fevereiro de 2013, com seus 13 episódios. O modelo seguiria o mesmo para os grandes sucessos do serviço de streaming, como Stranger Things, Dark e The Crown. Nascia assim o binge-watching ou, como ficou conhecido no Brasil, as maratonas, intrinsecamente ligadas ao mundo do streaming.
A doutora em comunicação Vanessa Valiati, professora e pesquisadora do Mestrado em Indústria Criativa da Universidade Feevale, ressalta que essa não é uma prática nova, uma vez que já existiam aluguéis de boxes de DVDs, por exemplo. Mas os aplicativos transformaram a experiência de se maratonar um conteúdo:
— Pode-se atribuir essa intensidade da prática (de maratonas) à facilidade do acesso ao conteúdo, disponibilizado integralmente em plataformas de streaming, aliado a interfaces amigáveis, à autonomia no controle temporal e à complexidade do conteúdo.
Ao assistir a uma série via streaming, por exemplo, a opção padrão é que um novo episódio se inicie segundos após o término do anterior. Ao mesmo tempo, para fugir de spoilers ou acompanhar discussões sobre uma nova série, é necessário ver todos os episódios inéditos o mais rápido possível.
Maratonistas
Mesmo a Netflix tendo mudado o jogo para todas as plataformas de streaming que vieram depois, até ela vem alterando sua postura em relação ao binge-watching. Um artigo de Deborah D'Souza no Investopedia, portal especializado em analisar o mercado financeiro, mostra que a companhia aos poucos vem abandonando o uso da expressão em sua comunicação com a imprensa e o público, nos últimos anos.
Em 2017, por exemplo, o termo "binge" foi mencionado pelo menos 15 vezes em comunicados da Netflix, comparado a uma só vez no ano seguinte. No dia 17 de outubro daquele ano, especificamente, a empresa publicou o artigo Ready, Set, Binge: More Than 8 Million Viewers 'Binge Race' Their Favorite Series, divulgando com orgulho seus usuários que mais maratonaram produções.
Segundo o serviço, pelo menos 8,4 milhões de usuários assistiram a novas temporadas inteiras em menos de 24 horas. O Brasil ficou na 10ª posição como o país com maior porcentagem de maratonistas. Um brasileiro ficou em terceiro lugar no ranking mundial, tendo visto 21 séries completas nas primeiras 24 horas do lançamento.
Depois disso, no entanto, com cada vez mais estudos ligando o termo a experiências negativas, a companhia vem se afastando do "binge-watching". Vanessa, por exemplo, que é autora da tese “Você ainda está assistindo?”: o consumo audiovisual sob demanda em plataformas digitais e a articulação das práticas relacionadas à Netflix na rotina dos usuários, defendida em 2018 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostra como essa nova forma de consumir os conteúdos altera rotinas dos usuários e padrões da vida cotidiana. O vício nas séries pode resultar em menos tempo para dormir, trabalhar ou mesmo de lazer nos finais de semana.
— As reações após a realização das maratonas é outro aspecto que chama atenção: ao mesmo tempo em que os usuários relatam o prazer de assistir ao conteúdo em sequência, alguns dos entrevistados recorrem à expressão “sensação de vazio” para descrever o sentimento predominante ao fim da maratona — aponta a pesquisadora.
Nessa perspectiva, ao menos, os heróis repreensíveis de The Boys surgem para salvar o dia, com suas aparições semanais. Se será o suficiente para transformar a visão do público sobre o streaming, no entanto, só os próximos episódios devem dizer.