Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor
A ilha teatral da Sbørnia, construída por Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez, é terapêutica. Quem vai assistir ao espetáculo alegre sai mais alegre. Se alguém está entristecido, sai melhor, às vezes, bem melhor. Os angustiados se esquecem, na hora do show, de suas angústias. Aliviam-se. O motivo do sucesso é a potência chaplinesca, que une várias artes, onde é essencial a participação ativa do público – como na Dança do Copérnico.
Sbørnia é uma ilha flutuante, que lembra a ilha de Thomas Morus, a Ilha da Utopia. A utopia é a imaginação da esperança, que esteve no espetáculo Tangos & Tragédias e está, agora, em A Sbørnia Kontr’Atracka. A troca ocorreu quando o Nico morreu, em 2014, e tudo parecia terminado. O ano de 2014 foi um ano interminável, foi um choque traumático para os familiares, amigos e fãs do Nico. Impressiona como ocorreu a metamorfose da Sbørnia, como esta foi reinventada. Foi uma verdadeira odisseia. Já a arte do Nico está viva. Ele é uma estrela sbørniana.
A palavra sbørnia é italiana. Significa porre. Em português se escreve esbórnia – festa, encontro festivo, farra hedonista. Entretanto, o idioma sbørniano tem entonação russa, como os nomes Kraunus Sang (Hique) e Maestro Pletskaya (Nico). Juntos eles criam o Tangos & Tragédias em 1984. Aos poucos, com sua originalidade, foram empolgando plateias de Brasil, Argentina, Equador, Colômbia, Portugal e Espanha. Sbørnia é uma ilha de poesia e alegria, que se desprendeu do continente e está sempre em movimento. Kraunus e Pletskaya se apresentaram no Fórum Social Mundial para 40 mil pessoas, seu maior público. Conquistaram artistas como Rita Lee, Hermeto Pascoal e o maestro e professor Hans-Joachim Koellreutter.
Esse musicólogo de origem alemã chegou ao Brasil em 1937 e marcou a cultura brasileira. Na década de 1940, foi professor do adolescente Antônio Carlos Jobim, depois deu aulas para Caetano Veloso, Isaac Karabtchevsky e Nico Nicolaiewsky, entre dezenas de músicos. Um dia, Hique perguntou se ele poderia comentar as passagens do Tangos & Tragédias que poderiam ser melhoradas. Ele escreveu uma carta da qual extraio aqui um trecho: “Raramente, muito raramente, assisti a um espetáculo ecoante num nível tão alto como o de vocês. Sempre uma experiência que não se esquece. Não só isso, mas, acima de tudo, uma aula de arte, de psicologia e de conduta humana. Uma verdadeira harmonia a duas vozes, um espetáculo atrativo e fascinante”. A carta completa está no livro Para Além da Sbørnia (2019), de Hique Gomez, que narra a história do autor, recorda como as artes entraram na sua vida e também a história da parceria com seu irmão da vida que foi o Nico. Li o livro depois que participei de um “cinedebate” na Faculdade de Psicologia da UFRGS com Hique a respeito do filme Até que a Sbørnia nos Separe (2013), de Otto Guerra.
Os antecedentes de Hique: uma avó italiana e uma portuguesa; já os avôs do Nico foram imigrantes judeus da Bessarábia. Os antepassados são estrangeiros, e isso tem muito a ver com as músicas e letras do espetáculo, que teve no escritor Caio Fernando Abreu um dos primeiros fãs. Ele escreveu em O Estado de S.Paulo sobre o trabalho de releitura da lixeira cultural. A partir de 1986, Nico e Hique construíram uma ilha sbørniana no Theatro São Pedro, sempre apoiados por Eva Sopher. Em 1989 começou o grande salto, quando foram entrevistados no programa Jô Soares Onze e Meia. Estiveram oito vezes com Jô ao longo dos anos, no programa de entrevistas mais famoso do Brasil.
O espetáculo é um aquecedor d’alma, toca os corações, energiza a libido, enriquece a espirituosidade nesse mundo desamparado. O público se sente amparado, descongela suas emoções.
Os mistérios sbørnianos também estão nos talentos dos artistas como Simone Rasslan, ou Nabiha Nabaha, que forma dupla com Kraunus Sang, e como Cláudio Levitan, o Prof. Kanflutz. É todo um time que faz A Sbørnia Kontr’Atracka. É um espanto o porquê de esse espetáculo musical, bem-humorado, não ser mais pensado pela filosofia e pela psicanálise. Essa crítica começo por mim, pois já devia ter escrito sobre esse fenômeno. Kant e o romantismo alemão valorizaram a piada como uma obra de arte abreviada pela virtude, pelo amor e a arte. Freud escreveu um livro sobre a piada e sua relação com o inconsciente (quase só com piadas judaicas) e depois ainda definiu o humor como um dom precioso e raro.
O espetáculo é um aquecedor d’alma, toca os corações, energiza a libido, enriquece a espirituosidade nesse mundo desamparado. O público se sente amparado, descongela suas emoções. Rir, recuperar a liberdade de gargalhar, é estimular a capacidade de brincar. A fidelidade do público revela a gratidão aos artistas, que trazem a beleza e a leveza de viver. É... a gente sai mais feliz do teatro da Sbørnia.
Uma entrevista com Hique Gomez
GZH convidou o psicanalista Abrão Slavutzky para conduzir a seguinte conversa com o parceiro de Nico Nicolaiewsky na criação de Tangos & Tragédias – espetáculo original a partir do qual resultou A Sbørnia Kontr’Atracka. As questões, que abordam a trajetória de quase 40 anos do universo sbørniano, foram elaboradas por Slavutzky e respondidas por Hique Gomez.
Teu livro Para Além da Sbørnia (2019) impacta especialmente ao abordar 2014, o ano da morte do Nico. Como foi a metamorfose da dor e do luto até chegar à Sbørnia Kontr’Atracka?
Foi como uma lança cósmica e metafísica metamorfoseada em metáforas e dilemas econômicos e espirituais. Mas a diáspora interplanetária, no sentido de quem deixou este planeta, mas deixou “para este planeta” todo um legado de possibilidades fictícias a ser explorado, nos elevou para um estado criativo real que acabou se confirmando como ficção factível. Entendes?
Escutei. Tua relação com o Nico – Ú-Nico, como defines tão bem – teve altos e baixos, aceleração criativa, mas tensões, pois ambos são artistas, pensadores e, às vezes, divergiam. mas, no palco, tudo se acertava, né?
Ú-Nico foi uma sugestão do nosso amigo Miguel Benedikt. Tivemos tensões criativas, mas aprendemos a usar o conflito como mola propulsora, à medida que, sim, nos admirávamos. Aprender que por trás do seu parceiro está a própria natureza operando de forma a te proporcionar o desenvolvimento de habilidades de relacionamento criativo, isso é uma lição e tanto.
Às vezes a gente não imagina o quão ridículos nós comediantes podemos ser, a ponto de despertar, pela identificação, justamente uma pessoa que estava 'ridiculamente' negando toda a graça que a vida pode ofertar. Rindo de nós mesmos nos liberamos de conflitos e ilusões.
No livro também há a história de uma moça ter falado que há seis anos não ria, pareceu estar deprimida e conseguiu se divertir vendo o espetáculo. Teve muita gente agradecida nesses quase 40 anos, imagino.
Isso é o cerne do Teatro Hiperbølico. Às vezes a gente não imagina o quão ridículos nós comediantes podemos ser, a ponto de despertar, pela identificação, justamente uma pessoa que estava “ridiculamente” negando toda a graça que a vida pode ofertar. Os clowns, os comediantes, servem para isso, para expor as partes que as pessoas negam em si mesmas. Rindo de nós mesmos nos liberamos de conflitos e ilusões.
Teus pais e avós foram importantes no teu caminho de artista, certo? Conta como foste te descobrindo como artista, como um humorista chaplinesco.
Conheci meu avô só por fotos. Ele era um artista ambulante, fazia promoção dos filmes do Chaplin pelas ruas quando entravam em cartaz. Na minha infância, via trechos dos filmes e aquela foto do meu avô sabendo quem era quem, mas querendo que meu avô fosse o Chaplin. Mas quem me jogou no humor foi o Nico. Ele já fazia algo engraçado no Saracura (banda). Quando começamos, decidi que, “se fosse para ser engraçado, teria de ser com personagens”. E ele topou. No começo, não sabíamos que nos transformaríamos em humoristas, éramos apenas músicos engraçados. Mas o tempo se encarregou de dar o tom da nossa dinâmica artística. Em dado momento as pessoas riam tanto que tivemos que admitir que fazíamos uma comédia musical.
Imagino o início do Tangos & Tragédias, em 1984, tu e o Nico no Bar do IAB nos primeiros shows. Creio que ninguém poderia imaginar a trajetória que seria construída. No teu livro, dá para se ter uma ideia do intenso trabalho, da importância do professor Koellreutter, de Caio Fernando Abreu, de tanta gente que apostou em vocês.
Em 1984, éramos pura diversão, anarquia! Como sabíamos que possivelmente não ganharíamos dinheiro com aquilo, ao menos queríamos nos divertir divertindo a plateia – e parece que foi isso que funcionou. Quando um escritor como o Caio abre espaço na sua coluna do Estadão na época, ou quando um mestre como Koellreutter nos escreve a carta que cito no livro, tudo isso fortalece nossas convicções e traz mais consciência ao que estávamos fazendo, consequentemente, mais domínio e possibilidade de avançar.
Quem é Kraunus Sang hoje?
Tudo se transformou, e nos adaptamos à nova realidade em um tempo até rápido. Reconheço que sou alguém que se adapta aos novos sistemas, tenho facilidade de criar novos modelos de interação com o que se apresenta de novo. Em mais de 30 anos, tu imaginas que nós fizemos shows nas condições mais adversas possíveis. O desafio está no cerne desse projeto. Fazer um espetáculo com músicas de Vicente Celestino e Alvarenga e Ranchinho e pensar que vai dar certo nas bordas do ano 2000... Põe desafio nisso! Depois desse tempo, pensar que se pode continuar no mesmo conceito, mas de outra forma, é um outro desafio. A gente curte isso!
A Sbørnia Kontr’Atracka é um time: Cláudio Levitan, Simone Rasslan, o Professor Menthales, a impressionante sapateadora, um coro...
Cláudio Levitan sempre esteve conosco. Amigo de infância do Nico, fertilizou a alma criativa dele quanto Nico ainda adolescente participava de festas onde o pai e o tio de Levitan, gêmeos judeus nascidos na Lituânia, integravam o trio Os Pimpinelas. Nico se encantava com essas apresentações. Cantavam canções russas, polonesas etc. Foi uma espécie de gênese sbørniana. Como diz aquela homenagem na musica do Nei Lisboa: “Na aura Levitan dos viajantes...”. Levitan... Sempre levitando e inspirando nossas vidas. Já a Simone Rasslan, mais do que ninguém, sabia naturalmente tudo sobre o nosso estilo de performance. O Tales Melati, que interpreta o Professor Menthales, aproximou-se da gente quando procuramos um tocador de gaita de foles. E a Pierrot Lunaire Gabriela Castro, a sapateadora, começou com um número de tap dance e entrou para a banda como uma “tap baterista” fazendo vários números de “tap percussão”. Esporadicamente, temos ainda a honra de receber Barão de Satolep (Vitor Ramil) e Abustradamus, personagem do André Abujamra que fez uma participação especial na websérie que logo estará na TV a cabo e no streaming da Box Brazil.
Conta um pouco sobre tua relação com Rita Lee (1947-2023). Vocês fizeram juntos uma música...
Começou quando escrevi para o centro de mensagens do site dela, que era recém-lançado, em 1998, por aí. Eu disse que era fã e tudo o mais. E, para minha surpresa, ela respondeu. Falamos um pouco por mensagens, e ela disse que nos conhecia da TV e queria que fizéssemos uma participação no show dela em Porto Alegre. Daí por diante começamos a bater papo e, claro, falar bobagens e rir. Em dado momento, ela disse: “Olha, isso dá música”. Desenvolvemos, claro, no estilo dela. Gravei, enviei e ela curtiu. Pedi autorização para tocar em shows. Mas nunca lançamos oficialmente. Imagino que ela deva ter muitas músicas não lançadas.
Na Sbørnia, o regime é o anarquismo hiperbólico, definição nova que não consta nos dicionários de política. Alguém já entendeu esse regime?
Não é para ser entendido e pode se encaixar numa dinâmica de política pós-Kapunga! Em épocas de grande indecisão, o povo se reúne numa praça pública e fica naquele clima de indecisão, insuportável indecisão, até que nasce uma flor! Uma linda flor! A seguinte frase explica tudo: “E quem come dessa flor sabe as respostas para as perguntas que ainda não foram feitas”.
Já estão pensando em 2024 e nos 40 anos da Sbørnia?
Sim! As datas sempre são motivos de celebrações, como no dia 12 de junho, aqui o Dia dos Namorados, lá o dia da Kapunga, dia em que a Sbørnia se separou do continente. Celebramos estando junto a quem, por algum motivo, se separou de entes queridos dizendo: “Sprotna Tamovsky!”. Ou: “Tamo junto!”.