Resgatando apresentações de 25 anos atrás, além de trazer esquetes e depoimentos, o documentário Tangos e Tragédias Para Sempre terá pré-estreia nesta quarta-feira (12), na Cinemateca Capitólio, às 19h30min. A exibição do longa também integra a programação especial em comemoração aos 94 anos do local. A entrada é franca.
Dirigido pelo publicitário Aloísio Rocha, que estreia na direção de um longa, a obra tem como fio condutor a 12ª temporada de Tangos e Tragédias no Theatro São Pedro (TSP), em 1997. Mas, segundo o cineasta, o projeto começou a ser germinado em 1988, quando ele assistiu ao espetáculo protagonizado por Kraunus Sang (Hique Gomez) e Maestro Pletskaya (Nico Nicolaiewsky) pela primeira vez. Rocha ficou encantado com o que viu.
Em 1994, o diretor conheceu pessoalmente Hique e Nico, quando trabalhou com a dupla para a publicidade de um programa da Rádio Atlântida. Ali criou-se uma amizade, além de uma parceria profissional. Após Rocha comprar um equipamento de gravação profissional, ele propôs aos dois gravar a temporada de 1997 no TSP.
Munido de duas câmeras, o diretor compareceu a cinco apresentações da temporada para registrar diferentes ângulos do Tangos e Tragédias. Também foram criadas algumas esquetes com a dupla, em que eles comentam a respeito da Sbórnia, falam sobre suas origens, entre outras estripulias. Porém, o material foi engavetado e o projeto só foi ressurgir em 2014, após a morte de Nico.
Agora a ideia seria resgatar o conteúdo, transformando-o em um documentário, o que Hique e Márcia do Canto (viúva do músico) toparam. Para isso, Rocha colheu depoimentos de pessoas que tiveram algum tipo de relação com o Tangos — entre fãs, artistas, amigos, familiares, técnicos que tinham envolvimento na construção do show. Nomes como Fernanda Takai, Vitor Ramil e Carlos Villalba marcam presença no documentário.
— O longa é uma espécie de índice do que foi a trajetória do Tangos. Hique é o âncora, o narrador. Ele conta a história da dupla desde o início, quando se conheceram. Lembra também a primeira apresentação (no pequeno palco do Bar IAB, em Porto Alegre, em 1984) — explica Rocha.
De acordo com o diretor, ele só usou 20% do material que acumulou no longa. A ideia é transformar o restante do conteúdo em uma minissérie para as plataformas digitais, contendo de oito a 10 episódios de 30 minutos. Por enquanto, após a pré-estreia no Capitólio, o longa também será exibido nas escolas da rede pública municipal e nas instituições filantrópicas de Porto Alegre, em contrapartida ao financiamento parcial da Lei Federal de Incentivo à Cultura — o que, segundo Rocha, equivale a 30% do valor necessário para montar o filme.
Rocha destaca que aquela temporada de 1997 no TSP retrata um período mágico de Tangos e Tragédias. Era uma fase em que a dupla dispensava microfones, como geralmente é feita uma apresentação de teatro.
— Isso permitia à dupla se expressar na sua totalidade. Todas as movimentações de palco e interações com a plateia no voz a voz — relata o diretor. — Foi um dos melhores momentos do roteiro do show, onde estava ali presente tudo que era o Tangos na sua essência, com alguns agregados desses 12 anos.
Hique corrobora. Ele destaca que aquela era uma fase do Tangos em que a dupla estava em "plena ousadia da construção artística" e, acima de tudo, no "exercício da viabilidade econômica do projeto". Os dois ganhavam a mobilidade de uma peça teatral sem microfone.
— O registro mostra a essência de nossa performance voltada para a comédia. Os textos, as expressões corporais estavam à frente até da musica, mas só um pouco à frente. Pois nota-se que os arranjos eram muito precisos e estudados — avalia o músico.
Para Rocha, Tangos e Tragédias foi revolucionário. O espetáculo de Hique e Nico transcendia o conceito de uma peça teatral:
— Criaram um universo que tem território, língua e costumes. Uma mistura da cultura judaica com muitos ingredientes da cultura gaúcha. Era um mundo de felicidade, que nos transportava para um universo de muita inocência, mas que, ao mesmo tempo, é um conteúdo completamente crítico ao país em que vivemos. Quando dizem que nós vivemos na Sbórnia, com toda aquela graça, fazem uma crítica social muito forte.
Convidado a comentar sobre o documentário, Hique Gomez enviou um texto a GZH. Confira abaixo, na íntegra.
Tangos e Tragédias Para Sempre por Hique Gomez:
É maravilhoso que alguém tenha guardado com tanta paixão uma fase do nosso trabalho em que estávamos em plena ousadia da construção artística e acima de tudo no exercício da viabilidade econômica do projeto. Neste momento, já tínhamos feito longas temporadas em São Paulo e no Rio, o que nos trazia muita segurança. Tínhamos decidido que não utilizaríamos equipamentos de som. Sem microfones, nós ganhávamos a mobilidade de uma peça teatral. O registro mostra a essência de nossa performance voltada para a comédia. Os textos, as expressões corporais estavam à frente até da musica, mas só um pouco à frente. Pois nota-se que os arranjos eram muito precisos e estudados. Nos anos seguintes, voltamos a utilizar equipamentos porque a plateia se tornou ruidosa, riam muito, e a gente cansava demais por ter que projetar as vozes acima dos ruídos.
Isso nos levou para um outro período, quando agregamos equipamentos como microfones sem fio, que não eram acessíveis antes, e desenvolvemos um desenho de som surround com o engenheiro de som Edu Coelho, em que utilizávamos caixas distribuídas nos teatros como som de cinema. Este registro do período desta década de 1990, sem microfones, é fantástico porque estamos no mesmo ambiente acústico da plateia. Isso significa que a sensação de respiração da plateia é a mesma nossa. Os ruídos da plateia fazem tão parte do espetáculo quanto a música que estamos executando. O tratamento das imagens ficou excelente. Aloísio tem domínio. Embora ainda um registro em fita, são imagens vívidas.
Mas a maior virtude do documentário é mesmo a paixão do diretor pelo material. E o quanto ele foi capaz de falar sobre isso através dos depoimentos que são muitos e todos eles convergem para o mesmo ponto. A identificação com a história dos personagens. Talvez ainda ocorram outros documentários que possam abordar outras facetas do desenvolvimento do que veio depois. Mas aí está a essência do nosso projeto.
É também o registro de um projeto de final de milênio, que faz uma síntese do século 20. Fãs do cinema mudo! Críticos como Chaplin, de O Grande Ditador (aliás, veja hoje ainda, antes das eleições). Músicas de sucesso dos anos 1940, a estética démodé dos personagens perdidos na década de 1920, delirantes como retardatários do surrealismo, hippies apocalípticos como artistas formados na década de 1970. Tangueiros darks como The Cure na década de 1980. New age experimentais na década de 1990.
Nico Nicolaiewsky utilizou por alguns anos uma toquinha que encantava a plateia e que aprofundava seu caráter de artista sborniano (na verdade, queria esconder seu início de calvície. Depois descobriu um medicamento que fez voltar abundantemente seu cabelo, não dá pra perder). A química de dois artistas apaixonados pelo que estavam fazendo, registrados pelo documentarista que segue hoje apaixonado pelo que estava fazendo naquele momento. É amor pelo que se faz. É amor compartilhado. Parafraseando o último e excelente CD lançado pelo Nico Nicolaiewsky e respondendo a sua pergunta: "Onde Está o Amor?" Está aqui, Nico, neste documentário do Aloísio. E segue tocando fundo as pessoas!