Mais do que um artista reconhecido, Hique Gomez é um personagem impresso na história da cultura do Rio Grande do Sul.
A afirmação poderia servir como metáfora, mas está ganhando um significado literal no momento em que Hique lança sua autobiografia, Para Além da Sbornia (BesouroBox, 368 páginas), com sessão de autógrafos marcada para nesta sexta-feira (16), às 19h30min, na Praça da Alfândega. No livro, composto de histórias alinhadas mais ao sabor da memória do que da cronologia estrita, Hique narra desde a infância em Porto Alegre até a concepção e os bastidores de Tangos & Tragédias, espetáculo que ele criou e apresentou por três décadas em parceria com Nico Nicolaiewsky (1957-2014) e que se tornou patrimônio cultural do Estado. Nico apresenta o livro em uma mesa mediada pelo jornalista Roger Lerina também na sexta às 18h, no Teatro Carlos Urbim, entre o Memorial e o Farol Santander.
A morte de Nico em 2014, em decorrência de uma leucemia, foi o que acendeu em Hique o impulso de contar a história. E aqui não se diz “sua história” porque, embora o livro seja uma biografia de Hique, com seus pontos de vista, seus insights, suas histórias de bastidores de uma carreira musical de quase quatro décadas, a maior parte do livro é também a história de Nico, da parceria, das tensões criativas sempre presentes na dupla, já que ambos tinham estilos de composição e visões musicais diversos.
Hique também passeia pelo cenário da música no Estado, fala sobre sua formação como músico, sua descoberta do pensamento místico e da astrologia, os bastidores de algumas apresentações e composições. Ele partilha histórias afetuosas de sua família, como o pai, Leo Gomes, zagueiro profissional, parte do lendário time do Renner que venceu o campeonato gaúcho de 1954; a mulher, a fotógrafa e iluminadora Heloiza Averbuck; e a filha, a escritora Clara Averbuck. E, claro, apresenta a criação dos personagens com os quais desenvolveu seu trabalho artístico: Lazlo, o Homem Banda, ou o onipresente Kraunus Sang, de Tangos & Tragédias, que chega a manter um diálogo com seu intérprete na orelha do livro. O próprio músico sinaliza que pode estar aí o embrião de um novo volume.
A GaúchaZH, Hique falou de seu livro, de Nico e da cultura do Estado.
De onde surgiu o impulso por escrever essa biografia?
O impulso veio do fato de perder um parceiro tão próximo e de saber que todos somos frágeis neste sentido e que poderia ter sido eu, ou outra pessoa qualquer próxima a mim. Quando alguém próximo nos deixa, morre uma linha de possibilidades futuras que tínhamos junto a esta pessoa... e o "eu futuro" junto a esta pessoa também deixa de existir. Sobretudo me dei conta de que no momento em que paramos eu tinha 25 anos vividos fora do Tangos & Tragedias e 30 anos dentro dele. Agora que completei 60 anos estou 30 anos dentro e 30 anos fora. Aprendi que escrever nossas histórias nos fortalece. Ler biografias também. Registrar nosso ponto de vista está na base do processo civilizatório. Nos identificamos em nossos conflitos. Nossas vidas não são tão diferentes.
Como o senhor chegou à estrutura em que o livro está organizado, não cronológica, mas tópica, com os episódios se organizando fora de ordem como se seguindo o impulso da memória (além, é claro, dos diálogos com Kraunus e dos trechos de canções)?
Eu não cheguei à estrutura, foi ela que chegou a mim. Ela me veio e eu fui registrando. A espontaneidade é uma marca do nosso estilo de comunicação. Achei melhor eu me expressar como sempre fiz. O Diálogo com Kraunus foi feito para a orelha do livro. Hoje, Clara, minha filha (a escritora Clara Averbuck), me lembrou dos diálogos que ela escreveu entre ela e a personagem do livro dela, que eu gostava muito. Acho que fui influenciado pela escrita dela. Ela é a escritora da família. Mas os diálogos com Kraunus prometem. Quem sabe ele confessa mais coisas. Um personagem sabe mais sobre o artista do que ele próprio. As canções também estão ali espontaneamente, mas falta um songbook.
Após reorganizar sua trajetória numa narrativa durante o período de escrita, que avaliação o senhor faz dessa trajetória?
Olha, pra mim tá bom. Ademais, foi o que deu pra fazer... eu queria ter feito mais, mas cara... tô tentando... não me pressiona... tô no meu tempo. São só 35 anos (Risos). Eu sobrevivo disso e minha avaliação vai mudando conforme vamos evoluindo. Tivemos uma sorte tremenda e a soma dos nossos esforços gerou um resultado muito positivo. Tem gente que pode fazer uma avaliação mais acurada do que eu. Eu sou muito agradecido pela experiência que tivemos juntos e pelo legado que eu sigo desenvolvendo. Mas eu queria realmente mais. Eu queria fazer a Sbørnia na Ilha do Presidio. Um parque temático. Nós temos um filme fantástico feito pelo Otto Guerra que já entrou em TVs a cabo e que vai transpassar gerações, assim como nosso trabalho de palco que tem levado mais e mais famílias ao teatro.
Acho particularmente interessante a forma como o senhor discute seus anos de colaboração com Nico e a dinâmica de ambos, marcada pelo ajuste de dois temperamentos artísticos diversos. De algum modo a perda de seu parceiro artístico mais constante o levou a querer contar essa história?
É evidente que se estivéssemos ainda fazendo o Tangos e Tragédias não teríamos começado a escrever nossa biografia. Mas essa que estamos lançando é só o meu ponto de vista. Muitas pessoas podem contribuir com registros sob outros pontos de vista. Pessoas que escreveram sobre nós nos revelaram aspectos que não conseguíamos ver, como a carta do Prof. Koelreuter que está no livro. Ele foi professor de Tom Jobim e de muitos dos principais compositores brasileiros. Hoje reli uma matéria na revista Bravo feita por um jornalista, o Augusto Andrade, que achava o trabalho perfeito. Eu não achava isso. Apenas gosto muito de fazer o que faço e quando descubro pessoas com quem interagir me divirto mais ainda como é o caso do Nico Nicolaiewsky e da Simone Rasslan.
Ao longo das páginas do livro, o senhor comenta que testemunhou em sua carreira a efervescência de uma cultura local feita por pessoas criativas, muitas delas o senhor cita como colaboradores ou amigos, como Carlinhos Hartlieb, Antonio Villeroy, Kleiton e Kledir, Dunia Elias. Como avalia a produção cultural hoje, e que nomes da nova geração o senhor indicaria?
Recentemente criamos um espetáculo para o Unimúsica nesta série chamada Cidade Presente-A Cidade que se Vê. Vi outros espetáculos desta série e definitivamente temos uma cena incrivelmente forte e original. Temos que registrar isso em livros, em filmes, em documentários. Já vi jovens incríveis, não vou citar nomes para não esquecer outros, mas a cena segue se fortalecendo. Neste final de semana eu estava no show do Borghetinho na concha acústica do Theatro São Pedro, saindo de uma incrível exposição de fotografias nas escadarias da Borges, passando pela Feira do Livro e logo indo para o POAJazzFestival cheio de atrações locais de altíssimo nível, que não deviam nada para as excelentes atrações internacionais. Há uma Sétima Efervescência na cidade. A Fábrica do Futuro é um farol que acende sua luz num momento de escuridão e o Estúdio Áudio Porto é um dos mais completos da América Latina. A Ospa está em seu próprio teatro definitivamente, sempre num gráfico evolutivo incrível. A Escola da Ospa está formando mais e mais artistas. Estivemos em cidades de 10/12 mil habitantes com centros Culturais e atividades invejáveis até para a Capital. São Lourenço do Oeste, Tapera, a cidade da Cultura, Ivoti com sua escola centenária onde fizemos um lindo concerto com a Orquestra da Escola. Breve nós teremos mais orquestras, mais artistas, mais espetáculos. Mais teatros. Estamos em um ponto sem retorno. A cultura é o que traz o discernimento para as pessoas. Diante da negação da cultura pelo atual governo, não há nada que eles possam fazer de muito relevante contra o nosso setor. Há uma cena forte demais para ser ignorada. Nós somos um setor da economia! Eles passarão e nós passarinhos. A poesia venceu.