Quando começou a envelhecer e já tinha deixado como legado a histórica reforma do Theatro São Pedro e a transformação do espaço em um dos principais palcos do país, Eva Sopher (1923-2018) passou a fazer uma brincadeira curiosa, um pouco macabra, que revelava seu humor sarcástico:
– Serei um fantasma do São Pedro – costumava dizer tanto a jornalistas quanto a pessoas mais próximas.
Às vezes mudava a piada, dizendo que seria tal qual o fantasma da ópera, fazendo menção ao clássico musical. Por trás da zombaria transparecia uma possível preocupação com o andamento do teatro ao qual havia dedicado grande parte de sua vida no dia em que já não estivesse mais entre nós.
Foram 43 anos à frente da principal casa de espetáculos do Rio Grande do Sul, desde que foi indicada em 1975 para tocar o que seria uma restauração no então agonizante prédio em frente à Praça da Matriz de Porto Alegre até o dia de sua morte, em 2018, aos 94 anos, decorrente de sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC).
Completaria cem anos neste domingo (18), no mesmo mês de junho em que se comemoram os 165 anos do teatro. Quis a vida que as datas de aniversários se encontrassem e, a cada vez que o São Pedro fizer aniversário, Eva Sopher também será celebrada.
A história de quando os caminhos se cruzaram muitos conhecem. Se Eva não tivesse cedido ao apelo de seu marido, Wolfgang Klaus Sopher, para aceitar o desafio de tirar o São Pedro da decadência e livrá-lo das infiltrações e dos cupins, o casarão erguido em 1858 poderia ter sido destruído, como acontecera com o prédio gêmeo, a Casa da Câmara, arruinado por um incêndio.
– Ela veio para fazer uma obra e acabou fazendo outra. Era para ser uma obrinha, mas acabou reconstruindo o teatro todo, porque não tinha como usá-lo. Deixou só as paredes, tirou todo o miolo – recorda Antonio Hohlfeldt, sucessor de Eva na presidência da Fundação Theatro São Pedro.
Nos anos 1960, Hohlfeldt era um jovem repórter do Correio do Povo quando Eva, recém estabelecida com Wolfgang em Porto Alegre, começou a atuar como agitadora cultural da Pro Arte, entidade de São Paulo que trazia artistas europeus para recitais. Lembra da mulher com sotaque alemão chegando à redação e pedindo espaço no jornal para divulgar as apresentações.
– Eva aprendeu fazendo. Chegava com um papelzinho datilografado com as informações sobre os espetáculos que queria divulgar. Eu fazia uma pesquisa e desenvolvia um pouco mais as informações sobre cada peça que seria apresentada – conta Hohlfeldt, que é autor de Doce Fera (1991), livro que reúne textos autobiográficos de Eva.
No dia 26, às 16h, no próprio São Pedro, ele e os coautores Diego da Maia e Gilberto Perin lançarão Teatro Palavra – 165 Anos do Theatro São Pedro, em que detalham o surgimento do Multipalco e suas várias salas para ensaios e apresentações de música, dança e teatro. Embora Eva tenha presenciado a construção do espaço a partir de 2003, entraves e demoras impediram que visse o projeto integralmente concluído.
Teimosa confessa, deixou para Porto Alegre um projeto tirado dos próprios sonhos: uma pretensiosa e moderna obra de 18 mil metros quadrados, com oito andares erguidos ao lado do São Pedro, mas abaixo do solo para não ofuscar a imponência do prédio principal. Juntos, os dois somam 25 mil metros quadrados de área construída, formando um dos maiores complexos culturais da América Latina. O Teatro Italiano, etapa final com término previsto para 2025, tem 650 lugares, mesma capacidade do São Pedro.
– Se ela não fosse do jeito que era, jamais teria feito tudo o que fez. Ela engoliu muito sapo. Quando ela inaugurou o São Pedro, eu dei a ela um sapo feito de papel machê. Porque ela sempre dizia: "Como a gente tem que engolir sapo". Ela falava muito na burrocracia, que a burrocracia era um atraso – conta Renata Rubim, sua filha mais velha, que neste domingo, no próprio São Pedro, vai inaugurar uma mostra fotográfica homenageando a relação da mãe com o teatro.
Os dois erres não eram do sotaque alemão. Era Eva sendo ferina.
Sua astúcia era inata. Judia nascida em 18 de junho de 1923 em Frankfurt-am-Main, na Alemanha, aos 13 anos precisou fugir dos nazistas junto com a família, mudando-se para o Brasil. Instalaram-se em São Paulo – acidentalmente, em uma zona de prostituição. Eva, ao dar-se conta da movimentação suspeita dos moradores, questionava à mãe, Marie Plaut, "por que as mulheres ficam debruçadas nas janelas com os peitos aparecendo?".
Sempre teve espírito independente, do tipo que decide os caminhos por conta própria. Como viviam com restrições financeiras no novo país, com apenas 16 anos avisou ao pai, Max Plaut, que largaria os estudos para trabalhar. Conseguiu um emprego na Casa e Jardim, loja de objetos de arte e galeria administrada por Theodor Heuberger, também fundador da Pro Arte em São Paulo e que mais tarde serviria como ponte para sua atuação como promotora cultural em Porto Alegre.
Fugiu de casa poucos anos depois, quando tinha 20 anos – ao menos era a versão que contava às filhas. O motivo seria o pai rigoroso, que a podava e não queria que ela usasse roupas curtas e maquiagem. Fez as malas e mudou-se para o Rio, onde conheceu Wolfgang e tornou-se mãe de Renata e Ruth (Péreyron, diretora do Theatro Treze de Maio, em Santa Maria), nascidas em 1948 e 1949, respectivamente.
– Meu avô era muito chato, e ela queria independência e liberdade. Ele não gostava que ela namorasse, usasse batom, essas coisas, então ela disse: "Chega". Naquele tempo, todos os europeus tinham essa independência – conta Renata.
Não ter concluído o Ensino Médio seria algo que, anos mais tarde, repetiria aos mais próximos. Não seria uma lacuna insuperável, já que gostava de arte desde pequena, o que lhe deu erudição. Chegou a se aventurar como artista, confeccionando encadernações e até vasos de barro para plantas. Recebia elogios dos clientes, mas largou o ofício.
– Eu trago artistas, não sou artista – dizia.
Trouxe a Porto Alegre artistas de todos os cantos do mundo quando apresentou o São Pedro reformado e modernizado ao público, em 1984. Nos corredores, quando enfrentava alguma dificuldade que limitava o funcionamento do teatro ou deparava com alguma desordem, seu humor ficava cortante. É aí que revelava uma faceta temida.
– Quando surgiam dificuldades burocráticas, quando faltava dinheiro, quando ela descobria que tinham estragado algo aqui no teatro... Virava uma fera. Gritava, falava palavrão em alemão – conta Hohlfeldt.
Viveu um momento de grande fragilidade em 1987, quando morreu Wolfgang, companheiro por mais de 40 anos. Segundo Renata, de tanta tristeza a mãe chegou a envergar alguns centímetros.
Seguiu comparecendo ao São Pedro mesmo após o AVC que lhe colocou em uma cadeira de rodas, em 2016. Certa vez, o músico e ator Hique Gomez decidiu fazer um ensaio em dia de semana para que ela pudesse assistir ao Tangos & Tragédias, grupo que alcançou a consagração naquele palco. Fez o maior esforço para conseguir bater palmas, causando emoção.
Em um ritual de despedida feito pelas filhas e pelos netos, suas cinzas foram jogadas atrás de uma paineira que fica entre o São Pedro e o Multipalco. É debaixo dessa árvore que Carmem Lúcia Morandi, que trabalhou como sua secretária desde a época em que o teatro estava em reformas, deposita flores para a antiga diretora.
Renata acredita que Eva consolidou o São Pedro de tal forma que o teatro está fora de qualquer risco, ainda que o assunto lhe tirasse o sono.
– Acho que ela tinha pesadelos sobre o futuro do São Pedro. Mas isso virou um templo da cultura. Nunca picharam as paredes do teatro. Qualquer prédio histórico tem alguma pichação. Até minha mãe se questionava sobre isso. Acho que, em função desse respeito, nada vai acontecer – estima a filha.
Seu escritório está praticamente intacto no andar logo acima do palco principal. Objetos pessoais foram tirados, mas mesa, cadeira e quadros ainda fazem parte da decoração, além de um jogo de gamão feito em peças de vidro. A sala deve ser preservada para visitação.
Segundo Hohlfeldt, os funcionários não temem que a profecia da antiga presidente do teatro se torne realidade. Embora brincasse que seria um fantasma, Eva parece não assombrar os que cuidam do seu legado.
– Não é sombra. É luz – corrige Renata.
Para celebrar dona Eva
- Com visitação deste domingo (18/6) até o dia 1º/7 (de terças a domingos, das 16h às 21h), a mostra fotográfica Eva Sopher e Theatro São Pedro: Amor à Primeira Vista poderá ser visitada na sala de exposições do teatro. A curadoria de Renata Rubim e a entrada é franca.
- No dia 26, às 16h, haverá o lançamento do livro Teatro Palavra – 165 Anos do Theatro São Pedro, de Antonio Hohlfeldt, Diego da Maia e Gilberto Perin. No Foyer Nobre do Theatro São Pedro, também com entrada franca.