Elas são cinco e são muito diferentes, mas também têm muito em comum. Todas são mulheres, mas são mais do que isso: todas fazem do "ser mulher" o combustível de sua arte.
Na data em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, GZH reverencia a contribuição de cinco artistas gaúchas para a causa feminina, contando histórias sobre suas trajetórias e lutas comuns.
Biba Meira: bateria "de mulherzinha"
"Tu toca que nem homem" foi uma das frases mais ouvidas por Biba Meira, ex-baterista da famosa banda DeFalla, ao longo de seus quase 40 anos de carreira. Ainda que ela seja uma das maiores representantes do instrumento no país — não à toa, pois tem um jeito único de comandar caixa, bumbo e tambores —, as comparações sempre vieram. Afinal, Biba é mulher. E "bateria não é coisa de mulher", diziam.
Mas Biba estava ali, e continuaria pelas próximas quatro décadas. Mesmo que, nos anos de 1980, quando começou, esta ainda fosse uma existência solitária.
— Sempre viajava com homens, os músicos sempre foram homens, os produtores sempre foram homens, os contratantes sempre foram homens, o dono do bar sempre foi homem... Era uma solidão que se dava pelo fato de só eu ser mulher e estar tocando bateria. Apesar de me dar muito bem com todos os guris com os quais toquei, sentia muita falta de conversar com uma mulher — relembra.
Felizmente, o cenário mudou, garante a baterista. Parte dessa mudança tem justamente um toque de tambor dado por ela: em 2015, Biba fundou As Batucas, uma orquestra de bateria e percussão que, não por acaso, é exclusiva para mulheres. Hoje, cerca de 120 alunas se reúnem em seis turmas para mostrar que bateria e percussão são sim coisas de mulher. E sem homens por perto.
— É um espaço onde as gurias se sentem à vontade e muito disso é por não ter homens ao nosso lado nos criticando o tempo inteiro. Quando tu tocas com algum homem, sempre recebe críticas. É como se tivéssemos que provar que somos boas — relata a musicista, celebrando o retorno dos ensaios do grupo neste mês de março.
Clarissa Ferreira: justiça às prendas de cá
A violinista, cantora, compositora e pesquisadora Clarissa Ferreira nunca aceitou o lugar designado à ela dentro do tradicionalismo. Imersa no universo da música regional desde a adolescência, questionava-se: por que são sempre os homens que contam as nossas histórias? Afinal, na música, era reservado para eles o lugar da criação, enquanto às mulheres cabia a figura graciosa da intérprete — ou da instrumentista que "enfeita o palco", como ela própria já ouviu.
Clarissa queria ela mesmo falar sobre as mulheres de seu pago. Mas, mais do que isso, queria entender porque somente aos homens cabia o status de "compositor". Investiu nos estudos sobre a temática, especializou-se e constatou: o cancioneiro gaúcho não faz jus à história das mulheres do Rio Grande do Sul.
— No geral são músicas compostas por homens e que estão retratando algum tipo de espera pelos homens. É uma mulher que sempre está à mercê desse universo masculino. Ou vamos pra um repertório que é quase uma apologia à violência ou vamos pra essa coisificação, da mulher que precisa ser cuidada pelo homem. Mas a gente vê, na própria historiografia do Rio Grande do Sul, que as mulheres tiveram outra realidade, que as mulheres resistiram e suportaram 10 anos de guerra — defende ela, que desde 2014 alimenta o blog Gauchismo Líquido, com reflexões sobre a temática.
Foi como forma de reivindicar essa coerência que a artista lançou, em 2018, a música Manifesto Líquido, sua resposta ao machismo presente na cultura regionalista. De lá para cá não parou em sua luta: outros singles vieram, um álbum está para sair e, no próximo dia 24, lança também o livro Gauchismo Líquido, com uma pesquisa detalhada sobre as origens do machismo na cultura gaúcha e seus reflexos na arte.
E, contrariando o que muitos podem pensar, Clarissa garante: não é a "guria que odeia o tradicionalismo".
— Já fui do rompimento, mas hoje vejo que estou em uma ressignificação desses elementos. E, na verdade, se a gente está falando dessas questões é porque a gente gosta. A música do Rio Grande do Sul é uma preciosidade, é algo que só se dá aqui. Pesquiso esses temas porque gosto disso — diz.
Cristiane Oliveira: película da vida real
A investigação na criação das personagens que habitam os filmes de Cristiane Oliveira é guiada pelo desejo de desmistificar estereótipos sobre o que é ser mulher. Para a diretora, no Brasil, "infelizmente, ainda" é um privilégio poder representar pessoas que fogem de padrões tradicionais. E, com as dificuldades de financiamento, precisamos buscar pessoas com motivações semelhantes e unir forças para não parar de realizar.
Dirigido e escrito por Cristiane, A Primeira Morte de Joana, por exemplo, foi o único filme gaúcho na competição nacional do Festival de Cinema de Gramado de 2021. A obra retrata o drama de uma adolescente de 13 anos que descobre que sua tia-avó faleceu aos 70 sem nunca ter namorado alguém. Ao encarar os valores da comunidade em que vive no Sul do Brasil, percebe que todas as mulheres da sua família guardam segredos, o que traz à tona algo escondido nela mesma. Essa história, apesar de estar dentro de uma ficção, é realidade para muitas meninas do mundo inteiro.
— Diversas vezes recebi retornos de mulheres que viveram situações semelhantes às das personagens. Essas sincronias provocam conversas maravilhosas, nas quais ampliamos nosso olhar pelo simples compartilhar de experiências. No entanto, às vezes, esses relatos surpreendem — conta, destacando que, após uma sessão de A Primeira Morte de Joana, uma jovem de 15 anos disse se identificar com a discriminação de gênero que a personagem vive. — O curioso é que o episódio aconteceu no debate do Festival de Estocolmo, na Suécia, um dos poucos países do mundo cuja educação pública tem décadas de experiência em priorizar valores feministas e bases focadas na neutralidade de gênero. Se lá as jovens ainda sentem isso, temos mesmo muito trabalho pela frente ainda.
Deborah Finocchiaro: arte para curar a dor
Após uma sessão em parceria com a Rede Lilás de sua peça Pois é, Vizinha..., realizada em Novo Hamburgo, a atriz e diretora Deborah Finocchiaro se reuniu com um grupo de mulheres, que compartilharam suas histórias. Uma delas, a quem a atriz definiu como "muito humilde", comentou, sorrindo, que tinha amado o espetáculo e que aquela havia sido a primeira vez que adentrava um teatro. Mas logo o riso foi se transformando em choro. Essa mulher decidiu, então, que queria compartilhar a sua realidade, encorajada pela interpretação que acabara de ver e pela rede de apoio encontrada ali.
Enquanto as lágrimas caíam, revelou que havia três anos vivia na edícula do terreno em que, antes, vivia na casa com o seu marido. Ele encontrou uma nova mulher, que tinha dois filhos, e colocou a dona do relato para ser a empregada de sua nova família. Nestes anos, foi vítima de abusos, estupros e ameaças para que não contasse o que passava a ninguém.
— Ela falou sobre este horror, esta barbárie, pela primeira vez na vida ali, depois da peça. Imediatamente, as mulheres da Rede Lilás disseram que ela não iria voltar para casa, que elas iriam lhe acolher. E assim foi feito. Mudou, definitivamente, a vida desta mulher — conta Deborah, que tem sua carreira no teatro voltada para as questões da mulher. — O que vem norteando o meu trabalho, as minhas escolhas artísticas, é essa crença mesmo de que, através da arte, a gente pode contribuir com questões cruciais dos nossos tempos — justifica.
O relato relembrado por ela foi apenas um dos diversos que recebeu ao longo dos quase 30 anos em que apresenta Pois é, Vizinha...., peça que retrata, justamente, o drama de uma dona de casa que vive trancafiada pelo marido. Além deste espetáculo, a artista encabeçou outros tantos com a temática da mulher, como Confessionário — Relatos de Casa e Invisíveis — Histórias Para Acordar, ambos desenvolvidos durante a pandemia.
Valéria Barcellos: por si e por suas iguais
Foi no dia 30 de agosto de 2015, na Rua da República, na Capital, que Valéria Barcellos soube que precisava ser mais do que uma artista. Ainda que ser como ela, uma mulher trans, preta, de origem periférica e artista, sobretudo no Rio Grande do Sul, já seja muita coisa, Valéria entendeu: precisaria usar a potência de sua voz para fazer ecoar os gritos de suas iguais, recebidos sempre por uma sociedade que insiste em manter seus ouvidos tampados.
Mas o insight não foi aleatório. Foi doloroso, perverso, criminoso. Veio quando, nesta data, nesta rua do bairro Cidade Baixa, Valéria foi esfaqueada. A justificativa feriu tanto quanto o golpe proferido contra ela. "Teu lugar não é aqui", disse o bandido. E ela percebeu, sentindo na pele, que seu lugar era mesmo outro.
— Realmente o meu lugar não era ali. Meu lugar era no palco falando sobre isso, reivindicando o meu direito de estar na rua, reivindicando o direito de outras que não puderam estar ali comigo, reivindicando a vida dessas outras. Foi isso que me fez entender que a minha arte não era só o meu trabalho, era também a reivindicação de vida de muitas outras como eu — lembra a cantora, prestes a lançar seu primeiro disco, Saraval.
Foi aí que Valéria passou a fazer da arte a arma que não teve para defender-se naquele momento. "Tuas palavras já não calam minha boca / Da minha arte faço munição", canta ela em Transradioativa, uma das marcas do processo de transformação do seu fazer artístico.
O sentido de munição é quase literal: Valéria sabe que, apesar das violências diárias que lhe acompanham em todas as datas do calendário, a condição "artista" lhe coloca em um lugar diferente. E vem desse lugar seu sentido de responsabilidade:
— Dentro dos meus "desprivilégios", ainda sou muito privilegiada. E entendo qual é o meu papel a partir disso. Uma pessoa tem que entender os seus próprios privilégios a partir do entendimento de porque suas iguais não os têm. É isso que venho tentando fazer com a minha arte. Por ser muito privilegiada dentro dos meus "desprivilégios", não teria sentido nenhum a minha vida se isso que recebi como dom não fosse usado em prol das minhas iguais, que morrem a cada hora.