A multiartista trans Valéria Barcellos usou a internet para denunciar um episódio que considerou transfóbico. Em sua página oficial no Facebook, ela publicou um texto intitulado "Carta aberta (e de repúdio à atitude) ao senhor Antônio Hohlfeldt, presidente do Theatro São Pedro" na noite de quinta-feira (9). De acordo a publicação, o dirigente da instituição teria sido desrespeitoso e ríspido em abordagem durante uma passagem de som no teatro.
"Estava eu na minha passagem de som, quando o senhor Antônio, grosseira e desrespeitosamente pediu que esta fosse interrompida, pois "estava vazando som para o foyer" e que "já havíamos tido nosso tempo". Quando da minha resposta de "sim, já estamos parando", pois havia sido avisada segundos antes do ocorrido (embora não nos tivesse sido relatada nenhuma atividade no foyer), que também foi seguida da frase "não precisa ser grosseiro", ouvi ainda um "Querido, não estou sendo grosseiro", tratamento este no gênero masculino que foi repetido pelo senhor citado acima. Cabe ressaltar que o tom e volume de voz não conseguem ser expressos em palavras, mas garanto a quem estiver lendo, não foi nada gentil", pontua a nota.
"Meu gênero não é fantasia. Embora roupa alguma defina gênero algum, eu estava usando um vestido verde com decote, o que embora, repito, não defina gênero, demarcava o meu, naquele momento", completou a artista.
Na postagem, praticamente todos os comentários (cerca de 127 até por das 16h30min) eram de apoio à Valéria. Em conversa com GZH, ela reforça que cansou de vivenciar situações de preconceito e que, por isso, resolveu expor o ocorrido na busca por conscientizar e gerar ações efetivas para que algo do tipo não ocorra novamente, nem com ela nem com outras pessoas da comunidade LGBT+.
— Não adianta nada abrir portas para pessoas trans se essas portas não são abertas por dentro. O fato de se permitir a aproximação, de qualquer pessoa da comunidade LGBTQI+, não exime, em nenhum âmbito, a possibilidade de alguém ser transfóbico e lgbtfófico — reflete Valéria.
Ela ratifica ainda a necessidade urgente de que todos os espaços, principalmente os públicos, tenham condições adequadas de receber e dialogar com corpos como o dela:
— Gostaria muito que houvesse ação efetiva, de conscientização. Uma palestra, um curso, alguma coisa, que pudesse ser feito nesses espaços. Não só lá, mas em todos os espaços culturais. Porque há sim uma necessidade de adequação aos novos tempos. Há sim uma necessidade de escuta imediata para corpos como o meu e para presenças assim. E existe ainda a necessidade urgente de se destruir a premissa de que para se mostrar autoridade é preciso grosseria. Somos todos profissionais da cultura, todos pessoas. Talvez, e friso o talvez, em posições hierárquicas diferentes — lamenta Valeria, dizendo que em todas as oportunidades que trabalhou no Theatro São Pedro anteriormente havia sido tratada como "estrela de primeira grandeza".
Na manhã desta sexta-feira (10), a Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac/RS) divulgou uma nota lamentando o episódio. Valéria diz que considera importante o posicionamento, mas insiste que algo mais precisa ser feito.
— Isso tem pouca ação. Não posso agradecer, pois poderia ter sido evitado. Quero ações efetivas. Se eu aceito as desculpas, digo obrigada, acaba aqui. Não é isso que eu quero. Desejo que outras como eu sintam-se à vontade de pisar naquele palco. Não só ali, em qualquer palco — defende Valéria.
O presidente do Theatro São Pedro Antônio Hohlfeldt admite que não se portou da maneira mais adequada. Mas destaca que reagiu sem saber com quem estava falando. Segundo ele, o incidente ocorreu no momento em que a equipe do espetáculo BR-TRANS, com participação de Valéria, fazia ajustes no palco principal da casa. Nessa hora, ocorria um recital em homenagem à escritora Clarice Lispector no foyer, e o som da peça estaria prejudicando o evento literário.
— Eu lamento o que houve, realmente. Fiz meu papel e fui reclamar do barulho para a produtora do espetáculo. E acho que fui enfático. Dei o recado e estava saindo. Foi quando ouvi de alguém um comentário de que eu havia sido grosso. E aí já fui respondendo, uma reação, sem saber quem havia dito. E comecei com "cara". Quando percebi o que realmente estava acontecendo, já era tarde. Lamento — pondera Hohlfeldt.
O presidente do teatro acrescenta que tentou conversar com Valéria, pedir desculpas, mas que ela preferiu não atendê-lo.
— Entendo a posição dela. Deve enfrentar muitos problemas assim. Respeito e sigo defendendo a diversidade e o trabalho dela, de quem sou admirador.
Valéria ressalta que não deve tomar outra providência além da publicação, feita, conforme a artista, com o objetivo de criar espaços de respeito e tranquilidade para quem é da comunidade LGBT+ trabalhar.