Na véspera do dia 20 de setembro, Dia do Gaúcho, a violinista e etnomusicóloga Clarissa Ferreira, de Bagé, lança a canção Manifesto Líquido, como formar de criticar o machismo na cultura regional e a representação feminina na música tradicionalista.
Na letra, Clarissa questiona o retrato feito ao longo de anos da mulher (ou da prenda), quase sempre em posição de submissão e, por vezes, em situação de violência. Afinal, como lembra Clarissa, a cultura gauchesca foi construída a partir das representações e interesses do homem viril e aguerrido, acostumado com a lida campeira.
– A mulher sempre foi colocada como coadjuvante em relação ao homem, ainda mais a essa figura do gaúcho – comenta Clarissa.
"Eu que me renda desse destino de prenda, contemporânea gueixa, gaucha, dar-se feito oferenda (...) a essência do cair da lágrima, consentem ser matéria prima, terços, costuras, rendas, donas de espera, tudo que oprima", canta em Manifesto Líquido.
Ouça a canção:
A compositora, que também é doutora em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e autora do blog Gauchismo Líquido, criado em 2014 para discutir temas ligados ao nativismo, dedicou os últimos anos a estudar a fundo a cultura regional rio-grandense. E trouxe parte do resultado dessa pesquisa para a canção, cuja letra foi escrita há dois anos e musicada em maio.
Clarissa chama atenção para o que denomina "trocadilhos de coisificação", ou seja, como a mulher é objetificada, reduzida a algo como um instrumento a ser tocado, um animal a ser domado ou um pedaço de carne a ser consumido.
– Várias letras reforçam isso. Veja Morocha, por exemplo – cita ela.
A canção, de autoria da dupla Mauro e Roberto Ferreira e lançada em 1984 pelo grupo David Menezes Júnior e Os Incompreendidos, tem um verso que diz: "Mulher pra mim é como redomão: maneador nas patas e pelego na cara". Popularmente, redomão é um cavalo novo, que ainda não foi domado.
– Mas vejo que até nas formas mais românticas de tratamento, ou carinhosas, digamos assim, nos colocam como flor, por exemplo. Sempre tratando a mulher como objeto ou com palavras que indicam fragilidade – analisa Clarissa.
A compositora passou a analisar o machismo e a representação feminina na cultura gaúcha e despertou uma discussão que ganhou ainda mais repercussão depois de um texto assinado pela apresentadora da RBS TV e cantora Shana Müller, com o título “Não sou china, nem égua, nem quero que o velho goste”.
Na publicação, Shana deu mais exemplos de letras de músicas famosas do cancioneiro gaúcho que incomodam as mulheres. A que batizou o texto, por exemplo, traz um dos refrões mais populares que, curiosamente, ficou conhecido na voz de uma mulher, Berenice Azambuja.
A atitude de Shana foi um grande empurrão para incentivar novas manifestações nesse sentido, segundo Clarissa, e inspirar novas discussões sobre o assunto.
– Quando Shana levantou essa questão, houve muita repressão, é claro, porque o público ainda é muito conservador. Mas desde então, me sinto muito mais confortável em questionar esse tradicionalismo e me manifestar. Parece que a gente não está sozinha.
No entanto, a artista entende que, quando se trata de tradicionalismo, é comum enfrentar resistência. Mesmo assim, ela conta que tem muita gente aberta a ouvir e até mudando de ideia sobre alguns temas, ainda que aos poucos.
– Muita gente ainda vê a tradição como incontestável, algo que não se pode mexer, não se pode questionar. Mas percebi que de uns tempos pra cá tem mais gente a fim de dialogar, de abrir a cabeça, de pensar diferente. Isso é um bom sinal.
Além de Clarissa na voz, violino e nos sons eletrônicos, a canção contou com a participação de Lucas Ramos na percussão, de Renato Muller no acordeon e de Tamiris Duarte no contrabaixo.
Veja o clipe:
Veja a letra de Manifesto Líquido:
Eu que me renda
Desse destino de prenda
Contemporânea gueixa gaúcha
Dar-se feito oferenda
contam em mito e lenda
argumentos que repreenda
numa tapera ou casca
onde o espaço compreenda
A essência do cair da lágrima
consentem ser matéria prima
terços, costuras, rendas
donas de esperas
tudo que oprima
aquele ingênuo protótipo campesina
livres galopam centauros
não há atenção que se prenda
(como no olhar da Salamanca pela fenda)
nesse mito ocidentalizado cansado
De um cowboy, um “gaucho” ou um cossaco
Semi bárbaro
anti intelectual
Mais dos mesmos arquétipos
Estilo patriarcal
Os anos (re)inventam verdades
O tempo modifica os cultos
mantêm fôrmas de vaidades
antigo dogma oculto
defendido como tradicional
Opressores oprimindo
doma (ir)racional
Simbólicas atrocidades
Inventando adjetivos
Tendo prenda como regalo
suprimento narcísico do peão
Dona de um corpo não seu
sem discussão
Que hoje se narra
dispensa homenagens de auto-promoção
interesseira confissão
romântica agressão
harmonizada dominação
simbólica submissão
trocadilhos de coisificação
Prenda tem voz!
conteúdo que adenda
cerne que acenda
sapiência que não omito
trago e evoco noutro mito
medo masculino antigo
deusa Métis
intuição!
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