Por Cátia Corrêa
Psicóloga clínica, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS
Assistir ao espetáculo Útero é como saborear diferentes linguagens artísticas simultaneamente: teatro, cinema, dança, artes plásticas e música se mesclam, conversam e convergem na criação de uma obra única. Para além de uma experiência sensorial impactante, Útero nos faz pensar, refletir sobre o feminino, apesar de a palavra não ser o principal meio de comunicação; as imagens, as cenas, o não verbal expressam a aventura e os percalços de se tornar uma mulher, amparada na forte atuação de Karine Paz, na belíssima fotografia e ritmicidade da montagem de Fredericco Restori e da mão precisa do renomado Marcelo Restori na direção geral.
A escritura visual de Útero desvela o amadurecimento paradigmático da personagem desde a infância, com sua vivacidade e alegria, a adolescência com suas descobertas e aflições, a mulher crescida com seus prazeres e conflitos. Útero é exemplar ao desnudar um desenvolvimento que não acontece sem esforço e sem dor, com idas e vindas, como todo processo de maturação – afinal, às vezes é necessário recuperar algo que faltou ou reforçar o que já foi adquirido para se seguir adiante. Contudo, é no momento da maternidade, no qual o processo de filiação se dá e se reedita, que a confrontação interna se impõe. É com a chegada de uma nova geração que a obra dá um salto em uma das cenas mais emblemáticas na qual assistimos à luta interna da personagem com os valores introjetados de uma sociedade dominantemente masculina.
As cenas que se seguem são de um simbolismo modelar. Nos levam a questionar, refletir sobre essa cadeia transgeracional de um sistema que privilegia somente o sexo masculino em detrimento do feminino, o que nos faz internalizar e naturalizar uma diferença que não se sustenta; mas que ainda segue, apesar de todos esforços e exceções, sendo transmitida de mãe para filha(o) e de pai para filha(o), de geração à geração desde o início do processo civilizatório. A intensidade desse desequilíbrio, desse estereótipo de gênero, fabrica uma desigualdade que carrega de limitações meninas e meninos desde a infância mais inicial. É surpreendente que, ao observarmos mães e pais cuidando de seus bebês do sexo feminino, seguidamente identificamos a sutileza do toque, a suavidade das brincadeiras, o que destoa do manejo com os meninos de mesma idade.
As exceções existem e estão crescendo, mas precisamos sempre estar atentos, porque várias vezes não percebemos o condicionamento sutil que nos faz repetir e moldar a nova geração dentro dos parâmetros sociais sexistas e desiguais.
Entretanto, não podemos deixar de lembrar que, há poucas centenas de anos, a mulher mal sabia ler e escrever, cuidava da casa, dos filhos, que eram muitos, e do marido. Considerada basicamente uma propriedade, nem bolsos sua roupa tinha para colocar dinheiro, porque não o tinha e, se tivesse, seria tomado pelo marido – observem que até hoje existem roupas femininas com bolsos de enfeite, que não servem para carregar nem dinheiro nem objetos. Somente em 1827 as mulheres adquiriram o direito à educação fundamental; mas foram através de questionamentos e da luta pela quebra de paradigmas sociais de mulheres como Nísia Floresta, Bertha Luz, no século 19, e tantas outras seguidoras ao longo do tempo, que a luta por direitos fundamentais e a emancipação das mulheres trouxe resultados que usufruímos em nossos dias.
As mudanças continuam necessárias para tornar a sociedade mais igualitária, menos sexista e mais justa com mulheres e homens; contudo, para que isso aconteça, necessitamos de mais questionamentos, de mais arte que nos instigue a pensar e a examinar as questões femininas como faz o espetáculo Útero. Essa obra é essencial para mulheres e homens que se cansaram do aprisionamento dos papéis de gênero tradicionais, para as mães e pais que desejam que suas filhas e seus filhos cresçam para ser eles mesmos e mais ainda para quem nem começou a se questionar.
O espetáculo
De volta a cartaz entre os dias 21 e 30 deste mês, Útero pode ser visto no período pelo sistema on demand, no qual o espetáculo fica disponível virtualmente em qualquer horário. Mistura de linguagens como teatro, dança, performance e cinema, Útero apresenta a atriz Karine Paz sozinha em cena, dirigida por Marcelo Restori, com criação cinematográfica de Fredericco Restori e produção de Fábio Cunha. Ingressos a R$ 25, à venda em entreatosdivulga.com.br.