Quando Julio Maria, repórter do Caderno 2 de O Estado de S.Paulo, decidiu que Ney Matogrosso seria seu biografado, ele sabia que teria de encontrar a essência de um artista que, em sua incansável busca pela liberdade, sempre se mostrou demais em sua carreira artística. Em shows, capas de discos, apresentações em TV e entrevistas, Ney parece estar ali por inteiro. Haveria, então, algo mais para ser revelado?
Julio sabia, com seu faro de repórter, que, para além de tudo o que o público já havia visto e dos dois livros que abordam a vida e a carreira de Ney – a biografia Um Cara Meio Estranho (1992), de Denise Pires Vaz, e o livro de memórias Vira-Lata de Raça (2018) –, era preciso descobrir como essa liberdade brotou dentro de Ney de Souza Pereira, nome de batismo do cantor. Ou, como prefere dizer, "de que barro" Ney foi feito. Esse é o ponto de partida do livro Ney Matogrosso – A Biografia (Companhia das Letras, 512 páginas, R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book), a ser lançado em 23 de julho, nove dias antes de o artista chegar aos 80 anos.
Como parte desse propósito, o biógrafo foi visitar dois lugares que, como revelam os dois primeiros capítulos do livro, foram essenciais nessa busca. Primeiro, a cidade de Bela Vista, em Mato Grosso do Sul, onde Ney nasceu. E, em Campo Grande, a casa dentro de uma vila militar onde Ney teve provavelmente o embate mais duro de sua vida, aos 17 anos: uma briga física com o pai, o sargento Matto Grosso, que vivia repetindo aos berros que não queria "filho viado". Nesse dia, Ney, farto do autoritarismo de seu genitor, caiu no mundo.
Julio fez essas incursões acompanhado da mãe de Ney, dona Beíta, à época com 96 anos – hoje, ela está perto dos 100 –, e da irmã do cantor, Naira. Ao entrar nessas propriedades e ver o quintal onde Ney teve contato com a natureza e com sua sexualidade, ele teve as primeiras pistas do que buscava. E foi além. Voltou no tempo e encontrou uma história familiar de transgressões, disputas por terras, ascendência indígena, bandoleiros, vida selvagem.
— Tudo isso fica no Ney. Veja-o no Secos & Molhados. É um animal (no palco) — diz Julio, em entrevista por telefone.
Travas
Com isso muito bem delimitado, e com a colaboração de quase 200 entrevistados, Julio tinha uma barreira a vencer: o próprio Ney.
— Ele tem algumas travas. Quando sente que a história entra em um terreno perigoso (para ele), puxa o freio — conta.
— Não escondo nada de ninguém — diz Ney, também por telefone, para a reportagem do Estadão.
Mais adiante, quando questionado sobre a maneira como o biógrafo narra sua vida afetiva, sobretudo, sua relação com o médico Marcos de Maria – até então um território pouco explorado, que, segundo o livro, colocou em risco o ideal de amor livre do cantor –, Ney afirma que não vê problema algum nisso. Porém, mostra onde está a trava.
— Não conto tudo, claro. Algumas intimidades guardo para mim.
Nos quase cinco anos de feitura do livro, Julio, claro, foi ganhando a confiança de Ney. Foram sete entrevistas presenciais e, durante a pandemia, ligações diárias com o cantor por mais de seis meses.
— Foi o refinamento do detalhe. Tem um momento muito simbólico que foi quando ele encontrou uma caixa com cartas e bilhetes de Elis Regina, Gonzaguinha e Cazuza. Ele nunca havia mostrado para ninguém — conta.
Elis, aliás, foi um ponto de ligação entre personagem e biógrafo. Quando escreveu Elis Regina – Nada Será Como Antes (2015), Julio procurou Ney para saber se ele tinha alguma história com a cantora. Ney lhe narrou um encontro em um festival em Brasília, em 1981.
E apenas isso. Agora, foi mais a fundo. Revelou que os dois conversaram uma noite inteira no quarto do hotel onde estavam hospedados. No dia seguinte, Elis escreveu um longo e carinhoso bilhete e colocou por baixo da porta. Ney guardou essa mensagem durante 40 anos – foi um dos guardados que ele confiou a Julio.
Ney Matogrosso – A Biografia percorre a trajetória artística do cantor desde os tempos do teatro – Ney, na verdade, queria ser ator – e esmiúça a passagem do cantor pelo grupo Secos & Molhados, que rendeu dois discos e alguns dissabores. Sem a versão de João Ricardo sobre a saída de Ney da banda – o músico não concordou em falar para o livro –, Julio se cerca, além da versão do biografado, de fatos narrados por outros integrantes, como Gerson Conrad e até de um músico que passou pelo grupo e poucos se lembram, o baixista Gerson Tatini.
Da carreira solo, o livro traz histórias preciosas sobre as gravações dos principais discos de Ney, revisita o histórico show Destino de Aventureiro (1984) e mostra a contribuição precisa do artista na construção de um dos maiores fenômenos do rock nacional, a banda RPM.
— Ney é um cantor que nunca pensou em ser cantor. Não quis ser nenhum outro artista. Ele tem uma alma livre, o que o torna um artista único — diz Julio.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.