A era dos podcasts nas plataformas de áudio por streaming tem sido responsável por revigorar um formato que caiu em desuso há anos: o das radionovelas. Os agora chamados audiodramas, ou até "podnovelas" (trocadilho com os podcasts), nada mais são do que uma versão modernizada das antigas narrativas seriadas que marcaram época no rádio.
Em Caxias do Sul, o trabalho dos irmãos Joe e Guido Guidini, de 26 e 29 anos, respectivamente, chama atenção nesse cenário. A dupla é protagonista de uma cena que ainda engatinha no Rio Grande do Sul. O audiodrama Aventuras Bizarras é conduzido pelos dois, que gravam todos o conteúdo no quarto de casa, com um cobertor preso à janela para abafar os sons externos.
Mas não pense que os irmãos caxienses são menos preparados artisticamente do que os antigos profissionais do rádio. Joe e Guido têm experiência no teatro e conseguem, com poucos recursos, transportar o ouvinte para cenários tão distintos como o espaço sideral ou um acampamento na mata. Interpretam as dezenas de personagens em Aventuras Bizarras – dois episódios já estão disponíveis no YouTube e no Spotify, e o terceiro deve estrear no último fim de semana de março.
Além do teatro, a formação em publicidade e o gosto por cultura pop contribuem para a criação das histórias.
– Antes de começarmos o podcast, a gente fazia muita coisa junto. Irmão se bate, se quebra, mas a gente era muito parceiro, estava sempre inventando alguma palhaçadinha. Queríamos criar um universo cinematográfico para todos os personagens que a gente tinha. Até gravamos um piloto, mas não deu certo (risos). Então a gente criou um universo cinematográfico radiofônico – explica Joe.
Nas histórias, os irmãos se transformam em velhos, crianças e até em extraterrestres, por meio de modulações na voz e truques de áudio. Tudo é feito de forma simples e amadora, mas o ritmo envolvente da narrativa e a criativa edição de Guido chamam atenção no cenário de audiodramas.
– Eu estou adorando esse universo, é muito mais fácil do que fazer vídeo para o YouTube. A gente consegue mais com poucos recursos. Está se criando uma comunidade muito legal, portas estão se abrindo para uma cena radiofônica – destaca Joe, também animado com a inserção do Aventuras Bizarras na plataforma Podcastchê, rede gaúcha de podcasters.
Com referências que vão desde o podcast gringo Rhett & Link até o brasileiro Uilame (criado pelo Cifra Club nos primórdios dos podcasts), Joe e Guido tentam abastecer o Aventuras Bizarras com informação e humor.
– Queremos resgatar coisas esquecidas e misturar com as loucuras da nossa cabeça. No teatro fazíamos muito isso, pegávamos algum clássico e fazíamos uma adaptação em cima – diz Guido.
Formato ideal para narrativas de fôlego
Apesar de trocarem os estúdios de rádio pelas gravações caseiras no próprio quarto, não há tanta diferença entre as velhas radionovelas e os novos audiodramas. Para Danilo Battistini, produtor de áudio, sound designer e autor do audiodrama Contador de Histórias, é como um "cinema sem imagem", com uma narrativa formada exclusivamente pela composição de sons.
– Uma radionovela, no fim das contas, é uma história dramatizada em áudio. O audiodrama tem esse nome mais popular hoje porque passou a ter na internet muitos outros canais para ser divulgado – aponta o profissional de 29 anos, morador de São Paulo.
Particularidades diferem os audiodramas das radionovelas. Entre elas, a tecnologia e a comodidade para gravar com qualidade profissional sem sair de casa, facilitando a pós-produção: inserir efeitos, modular vozes e afins. Nas radionovelas, populares no Brasil principalmente entre as décadas de 1940 e 1950, a encenação e os efeitos sonoros eram feitos ao vivo.
– Podcast é um dos elementos importantes para renovar o rádio. Já tivemos um boom e apagou. Aí se retomou agora com muita força na questão ficcional. Seja musical ou jornalístico, o rádio trabalha cada vez mais na perspectiva ao vivo. A rádio jovem ficou mais falada em algumas emissoras. A profundidade de uma entrevista mais longa ou de um debate mais longo me parece que tende a migrar para o podcast – aponta Luiz Artur Ferraretto, coordenador do Núcleo de Estudos de Rádio da UFRGS.
Cavando espaço no Brasil
Em meio às conversas de mesa de bar que dominam a produção de podcasts no país, o audiodrama engatinha. Mas o podcast começa a se entranhar no cotidiano do brasileiro, o que pode ser um bom sinal para quem pensa no uso dramatúrgico do formato. Em 2018, o crescimento foi exponencial. Segundo a Blubrry, comunidade de podcasts que fornece sistemas de estatísticas, o Brasil se tornou o segundo maior mercado de podcast no mundo em 2018, atrás dos Estados Unidos.
Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Podcasts (ABPOD), divulgada em 2018, o consumo de podcasts no país se dá basicamente pelo celular (91%) e principalmente quando as pessoas estão em trânsito (79%) ou fazendo atividades domésticas (68%).
Entre as produções que apostam no audiodrama no cenário brasileiro, está o Contador de Histórias, de Danilo Battistini, 29 anos. Morador de Santo André (SP), ele é o responsável pelo podcast que oferece histórias dramatizadas que, normalmente, flertam com o suspense e o horror. Cada episódio costuma oferecer uma trama fechada, com duração de 10 a 20 minutos. Em suas produções, Danilo conta com dubladores profissionais e chama atenção pela boa qualidade técnica com seus efeitos sonoros – também trabalha como sound designer. No ar desde 2016, o Contador de Histórias traz tramas originais, como O Quarto de Hotel e Mortes ao Som de Jazz.
– Tenho vários cadernos pequenos, em que escrevo todo tipo de ideia. Monto a história aos poucos. Geralmente, em duas semanas consigo finalizá-la para passar a limpo o roteiro. Depois, vou atrás do elenco, o que geralmente leva mais um mês até conseguir gravar todos os personagens. Dependendo da complexidade da história em termos de sonorização, em umas 10 horas de edição eu consigo finalizar um audiodrama de uns 15 a 20 minutos – explica Danilo, também autor do podcast Contador de Historinhas, audiodrama para o público infantil.
Todo o trabalho de produção, que pode levar mais de um mês não, é remunerado – recebe doações por meio de plataformas de financiamento coletivo. Danilo diz que arquiteta o Contador de Histórias apenas para contemplar o resultado final.
– Acho importante motivar esse tipo de produção, para que no Brasil se tenha um cenário tão rico em audiodrama quanto existe lá fora. Quero ajudar mais pessoas a conhecerem e terem a chance de se apaixonar por esse gênero. Gosto dos comentários de pais e mães que escutam com filhos e filhas. Uma vez, um ouvinte me mandou uma carta que a filha dele escreveu por gostar do episódio Imaginário: Onde o Folclore Vive – explana. – Nessa época de muita coisa em vídeo, YouTube, Netflix, Amazon Prime e afins, essas produções só em áudio ajudam a manter nossa imaginação e criatividade sempre em exercício – complementa.
Outro audiodrama brasileiro de destaque é 1986, feito por Guilherme Afonso, 32 anos, de São Paulo. Ele mantém uma produtora chamada Estalo Podcasts, que produz programas e séries em áudio. Com duas temporadas no ar e uma terceira em vista, a trama de 1986 envereda para a ficção científica.
A primeira temporada é ambientada em um passado distópico, nos anos 1980, em meio a um inverno nuclear. Já a sequência trabalha com a relação da humanidade com a inteligência artificial. Nos dois casos, Guilherme dubla os protagonistas, e cada episódio leva de 10 a 12 horas para ser editado.
– Tenho tesão muito grande em colocar o fone de ouvido, pegar o roteiro e as vozes, imaginar a cena e construí-la. É muito gratificante ver o quanto a gente consegue criar só com áudio, vivendo em uma era de YouTube, que tudo é muito visual. Já recebi e-mail de gente que tinha depressão dizendo que a historia que eu contava ativava a imaginação dele, e isso o ajudou. Uma motivação é essa troca com o ouvinte – sublinha. – Óbvio que uma vontade financeira aparece, embora eu não tenha lucro com a produção de 1986. Tenho esperança que as marcas comecem a enxergar o podcast como meio de publicidade.
Diante da overdose visual, aposta na imaginação
Assim como Danilo Battistini, Guilherme é motivado pela recompensa do trabalho pronto:
– É muito gratificante ver o quanto a gente consegue criar só com áudio, vivendo em uma era de YouTube, em que tudo é muito visual. Já recebi e-mail de gente que tinha depressão dizendo que a história que eu contava ativava a imaginação dele, e isso o ajudou. Uma motivação é essa troca com o ouvinte. Óbvio que uma vontade financeira aparece, embora eu não tenha lucro com a produção de 1986. Tenho esperança de que as marcas passem a enxergar o podcast como meio de publicidade.
Já o ilustrador Vitor Hugo Mota, 37 anos, partiu da premissa de aproveitar o audiodrama como uma atração direcionada aos cegos. Ele criou a Agência Transmídia como podcast, mas logo começou a produzir material diversificado pela plataforma. Morador do Rio de Janeiro, Vitor é o responsável pelo audiodrama Sentinelas, com as peripécias de um time de super-heróis em 28 episódios.
– Esse produto me permitiu conhecer mais sobre o mundo dos deficientes visuais e de como eu poderia ajudá-los a se divertir tanto quanto qualquer pessoa que enxerga.
Versatilidade para além da ficção
Para Vitor Hugo Mota, o cenário do audiodrama no país está aberto a experiências.
– Tem muita gente experimentando, uns aprendendo com os erros, outros se mantendo no mesmo nível por não terem interesse em desenvolver algo mais refinado. Muita gente faz texto com narração lenta, muito explicativa, como longas pausas para inserir efeitos.
Formados em Publicidade, os amigos André Monsev, 29 anos, e Lucas Kircher, 28, produzem em Porto Alegre o audiodrama A Voz de Delirium, nascido para dar vazão à produção literária da dupla. São histórias que eles chamam de "alucinações semanais", com relatos da cidade fictícia de Delirium, feitos pelo radialista Palmito Antares, personagem central da narrativa. A primeira referência dos criadores foi A Guerra dos Mundos – história de H. G. Wells que causou pânico nos EUA quando interpretada ficcionalmente na rádio CBS pelo jovem ator Orson Welles, em 1938.
Ao clima de narrativa fantástica com pitadas sobrenaturais, a dupla adiciona um tom de humor nonsense, ao estilo britânico do grupo Monty Python. De influências mais recentes, Monsev e Kircher citam o podcast norte-americano Welcome to Night Vale.
– Quando começamos, o formato do podcast tinha dificuldades de consumo, não era nada intuitivo. Com o Spotify, tudo ficou mais fácil, a tendência é democratizar cada vez mais – anima-se Monsev.
Luiz Henrique Romagnoli, produtor independente e presidente da Associação das Produtoras Independentes de Rádio e Outros Conteúdos de Áudio (Apraia), tem experiência em dramatizações radiofônicas para campanhas publicitárias. Para ele, as emissoras de rádio deveriam prestar atenção no audiodrama:
– A dramaturgia ainda vai ser uma forma de as rádios reforçarem sua presença junto ao público. Espaço tem. As pessoas para quem apresento trechos de radionovelas comentam que adorariam ouvir mais. Audiodrama não precisa ser radionovela, pode ser documentário, dramatização de fatos históricos é uma área que está completamente virgem, apesar de ser muito antiga no Brasil.
Do áudio para vídeo
Nos Estados Unidos, a produção de audiodrama está consolidada. Tanto que há casos de histórias radiofônicas que estão se tornando visuais. Um exemplo é Lore, audiodrama americano que aborda eventos sombrios que inspiraram ou foram motivados por histórias do folclore mundial. A produção virou série da Amazon Prime Video e já conta com duas temporadas.
Estrelada por Julia Roberts, Homecoming é outra atração da Amazon adaptada de um podcast, criado por Eli Horowitz e Micah Bloomberg. Na série, Julia interpreta Heidi Bergman, uma assistente social que trabalha em um programa com soldados que retornam de zonas de conflito.
Welcome to The Night Vale, audiodrama criado por Joseph Fink e Jeffrey Cranor, está sendo adaptado para o canal FX. Na atração, um programa de rádio narra acontecimentos estranhos do povoado fictício de Night Vale.
Além do audiodrama, um dos maiores sucessos da história do podcast, a série documental Serial, que aborda a investigação de um assassinato, se transformou na série The Case Against Adnan Syed, do canal HBO.
Audiodramas brasileiros para ouvir
Contador de Histórias
- Quem faz: Danilo Battistini.
- Como é: histórias dramatizadas de suspense e horror.
- Onde ouvir: contadordehistorias.art.br
1986
- Quem faz: Guilherme Afonso
- Como é: jornada de um sobrevivente de um inverno nuclear.
- Onde ouvir: 1986podcast.com.br
Sentinelas
- Quem faz: Vitor Hugo Mota
- Como é: super-heróis brasileiros se unem para combater uma ameaça.
- Onde ouvir: agenciatransmidia.com.br
Podstoria
- Quem faz: Danton Freitas
- Como é: crônicas com personagens e referências da cultura pop.
- Onde ouvir: podstoria.com
Aventuras Bizarras
- Quem faz: Joe e Guido Guidini
- Como é: Joe e Guido narram encontros divertidos com diversos personagens.
- Onde ouvir: bit.ly/joeguido
A Voz de Delirium
- Quem faz: André Monsev e Lucas Kircher
- Como é: radialista narra o cotidiano de uma cidade fictícia.
- Onde ouvir: deliriumoficial.com