Durante a infância em Santa Cruz do Sul, Lya Luft via duendes. E gnomos. Pequenos seres vestindo roupas verdes e chapéus pontudos que sentavam-se na borda da janela e conversavam com a menina de olhar espantado.
– Eu era uma criança de muita imaginação. Não tinha um amigo imaginário, mas uma família inteira, todos pequeninhos. Sentava no peitoril da janela no meu quarto e conversava com eles. Todos de verde, com gorrinhos. Provavelmente, tirei essa imagem de um livro. Mas, para mim, eram reais.
Curiosa, sem muitas amizades da mesma idade (seu único irmão, o futuro advogado Ney Luft, era quatro anos mais novo), com uma certa má-vontade contra hierarquias e autoridades (principalmente a da mãe, que a exercia com mais rigor do que o pai), Lya se comunicava com o mundo usando a imaginação como linguagem, o que às vezes gerava maravilhas e às vezes provocava assombros e mal-entendidos.
– Eu era muito assustada, tinha muitos medos de infância, achava que, atrás das cortinas, havia figuras invisíveis espreitando... Era também uma época de uma certa educação pelo terror. Minha mãe dizia: "Não engole caroço de bergamota que vai nascer uma bergamoteira na tua barriga". E claro, eu fazia tudo errado e sentia, à noite, aquela árvore crescendo na minha barriga.
Lya completa 80 anos neste sábado (15/9), mas até hoje situa nessas idiossincrasias de infância a chave de compreensão para muito do que fez e se tornou. Da infância trouxe uma tendência à divagação intuitiva, nascida de um maravilhamento distraído; a desconfiança de quaisquer hierarquias e figuras de autoridade; a imaginação como uma visão de mundo. A infância transborda na idade adulta também em sua ficção: nas raras vezes em que crianças aparecem em seus contos e romances, elas carregam a imaginação como traço característico, e suas vozes são maduras, incongruentes, como o discurso de um adulto no corpo de uma criança – algo que ela radicalizou em O Ponto Cego, romance no qual o menino narrador sofre de uma doença que acelera o envelhecimento do corpo.
– Ainda enxergo a menininha que eu era, em Santa Cruz. O que eu queria? Entender o mundo. Claro que eu não verbalizava nesses termos. Queria entender o vento nas árvores, os bichos, os barulhos, de manhã, à noite, as pessoas. Ainda sou capaz de ficar um dia inteiro sentada olhando pela janela pensando em não sei o quê, aquilo que o Freud chamava de "atenção flutuante". E é nesses momentos que, internamente, alguma coisa se faz dentro de mim e, mais tarde, vou acabar escrevendo – diz a autora de As Parceiras.
Lya nasceu em 1938 em Santa Cruz do Sul. Seu pai era o advogado Arthur Germano Fett. Nascido em Taquara e criado em Porto Alegre, ele se formou em 1928 na Faculdade Livre de Direito (hoje Faculdade de Direito da UFRGS), na mesma turma de outros luminares do Direito e da política rio-grandenses, como Mem de Sá, Ruy Cirne Lima e Alberto Pasqualini. Já no ano seguinte, foi nomeado juiz em Santa Cruz, onde conheceu Wally Neumann, filha do dono do tabelionato local, Theodoro Neumann. Alberto e Wally se casaram em 1934. Arthur viveu em Santa Cruz até o fim da vida, em 1973. Após deixar a magistratura, tornou-se advogado e trabalhou para companhias fumageiras do município. Ajudou a fundar o embrião do que seria a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Lya cresceu em uma casa grande com um terraço e uma área verde, "um pequeno sítio", como ela recorda. A vista da janela era de uma faixa de árvores onde o mundo parecia mais misterioso e uma série de morros azuis no horizonte, várias vezes descritos em passagens de seus livros. A cidade contava com estimados 55 mil habitantes (hoje, tem 130 mil) e voltaria a aparecer em vestes imaginárias em muitas das histórias de Lya, mesmo ela tendo deixado o lugar em 1957, aos 18 anos, e voltado muito poucas vezes.
Memórias da Escola Normal
Ao falar de seu passado, Lya menciona constantemente o pai e os livros. Estes últimos, suas principais companhias na infância. O primeiro, uma das figuras fundamentais na vida da garota imaginativa. Era um leitor constante de histórias, contos de fadas no original alemão que havia mandado trazer da Europa.
– Meu pai foi uma influência muito positiva em minha vida. Era um homem autoritário, mas, ao mesmo tempo, era muito liberal. Foi ele que me formou – relembra ela.
Depois de cursar o então Ensino Primário e patinar no então Científico, Lya passou um ano em Porto Alegre, em 1955, cursando a Escola Normal no Colégio Americano. Ali conheceu outra figura fundamental para seu caminho literário, Maria de Lourdes Meneghetti, então professora de literatura e mais tarde atriz. Décadas depois, em 1984, ela atuaria na peça Reunião de Família, adaptação para o teatro de um livro de Lya, com roteiro de Caio Fernando Abreu e direção de Luciano Alabarse.
– A Lourdes foi a primeira pessoa que veio ao encontro desse meu encantamento da literatura. Ela nos dividia em grupos e nos mandava ler coisas como O Marinheiro, de Fernando Pessoa, que hoje quase ninguém conhece. Aquelas três mulheres numa torre, esperando o marinheiro que não se sabe se vem, não vem, se existe ou não. Fiquei fascinada. Dos livros que tinha lido a vida inteira, aquilo foi o que me deu uma punhalada: "Meu Deus, é isso que eu quero fazer".
Roída pela saudade de casa, Lya voltou a Santa Cruz para concluir a Escola Normal em um colégio católico. Só voltou à Capital para cursar faculdade, em 1955. Pensava em Letras, mas foi desencorajada por mais de um professor a quem consultou – sua formação Normal não contemplava três anos de Latim do ensino clássico, e assim, suas chances de admissão eram nulas.
– Vim para Porto Alegre e pedi um encontro com o reitor da PUCRS, o irmão José Otão. Ele era muito engraçado, um homem alto, com uma voz profunda. Cheguei e disse: "Irmão, meu nome é Lya Fett, meu pai é advogado em Santa Cruz e quero fazer faculdade, mas não sei qual. Acho que eu não sirvo para nada, mas queria seguir estudando".
O religioso riu e recomendou que ela cursasse Pedagogia, o que Lya fez, embora tenha passado o curso todo ainda pensando em fazer Letras. Já concluindo a primeira faculdade, resolveu prestar o vestibular estudando Latim sozinha com a ajuda de livros escolares emprestados dos primos.
Seu método, o de ir comparando e traduzindo textos, já na época era considerado ultrapassado, mas, para ela, funcionou. Foi aprovada nos primeiros lugares. Ela própria, contudo, conta o caso como um exemplo da Lya acadêmica: alguém que dominava com facilidade coisas para as quais já tinha um pendor, como o aprendizado de idiomas, mas que era uma estudante relapsa em coisas que a desinteressavam, como ciências biológicas, matemática ou física.
– Hoje, muitos ex-professores meus dizem: "Ah, a Lya foi uma ótima aluna desde criança". Tudo mentira, eu era terrível! (Risos.)
Terrível que seja, Lya concluiu o curso de Letras Anglo-germânicas em 1962. E faria ainda mais dois mestrados, um em Linguística, na PUCRS, em 1975, outro em Literatura Brasileira, na UFRGS, em 1978. Foi também professora a partir de 1969, mas abandonou o magistério de vez assim que sua carreira literária deslanchou, no início dos anos 1980. Não era muito boa, admite.
– Nunca tinha o pendor para a academia. Tenho o pensamento muito pouco científico.