Convidado de hoje do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, o angolano José Eduardo Agualusa lançou no ano passado o romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários. O livro trata da juventude que luta para ampliar a democracia em Angola, mas também aborda o papel dos sonhos no cotidiano. Nesta entrevista, concedida por telefone, o autor trata dos principais temas do romance e avalia a situação atual do Brasil, que julga estar em um clima de "pré-guerra civil".
Seu livro mais recente, A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, tem como inspiração o episódio do 15 + 2, em que 17 ativistas foram presos em Angola por militarem em nome da democracia. Para o senhor, qual é a importância da arte e da literatura nas transformações políticas e sociais?
A função da arte é também fazer pensar, promover debates, elevar pensamentos a outro nível. Arte não é a mesma coisa que divertimento. No Brasil isso é muito claro. Todo o movimento de democratização do Brasil contou com a participação de artistas.
Uma das personagens do romance cresceu em um condomínio de luxo, chegando à idade adulta sem saber qual era a realidade vivida pela maior parte dos habitantes de Angola. Como crescer nesse tipo de ambiente pode impactar a formação de um jovem?
Um aspecto curioso, no caso angolano, é que essas redes de condomínio foram em grande parte construídas por empresas brasileiras. Há um modelo brasileiro, o pior modelo de moradia, que infelizmente foi exportado para Angola pelas grandes construtoras. O Brasil já exportou, inclusive para Angola, coisas melhores. Por conta disso, as novas gerações das famílias angolanas próximas ao poder, com mais poder econômico, crescem completamente alienadas, com uma ignorância profunda a respeito do país. Esses jovens realmente não sabem o que é Angola. Mas é interessante como alguns conseguem romper com esse ambiente, como Luaty Beirão, rapper e ativista político que se aproximou do povo pela música.
O senhor já publicou livros ambientados no Brasil, bem como viaja e discute sobre o passado e a situação atual do país. Qual é sua avaliação sobre o momento?
O Brasil se radicalizou muito. Há posições muito extremadas, que me lembram a situação em Angola antes da guerra civil, em que houve uma grande divisão da sociedade. As pessoas passaram a se odiar mutuamente, impedindo a emergência de um pensamento diferente. O clima que o Brasil vive hoje me assusta muito. Vejo todos os dias gente bloqueando pessoas nas redes sociais. Pessoas que eram amigas deixam de se falar. É uma coisa terrível bloquear alguém simplesmente porque pensa diferente. Isso faz com que as pessoas se movimentem em um círculo de pensamento único. A maior virtude da democracia é que, de duas opiniões diferentes em confronto, possa surgir uma ideia melhor. Se ninguém está sequer disposto a ouvir o outro, estamos a caminho de um clima de pré-guerra civil. Isso é muito perigoso.
A falta de diálogo vista nas redes pode gerar conflitos maiores?
Os fazedores de guerra sabem muito bem que a primeira coisa que precisa ser feita para criar um inimigo é dar ao outro a ideia de que esse inimigo não é bem uma pessoa. Ou seja, você desumaniza o outro, tira dele o direito a uma identidade. Estamos vendo isso acontecer agora no Brasil.
O senhor costuma dizer que ditadores não leem romances. Por quê?
Tenho essa ideia de que, quando você lê um romance, você se coloca na pele do outro. É um exercício de empatia. Alguém que tenha desenvolvido esse músculo da empatia dificilmente toma posições de domínio em relação ao outro. Por isso acho difícil que um torturador ou um grande ditador tenha o hábito de ler romances.
É conhecida a influência do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro para a criação de A Sociedade dos Sonhadores Involuntários. Como se deu esse processo?
O livro é uma homenagem aos jovens democratas angolanos, mas também resultado de uma série de conversas que tive como Sidarta Ribeiro, que tem a ver com o papel do sonho no cotidiano das pessoas. O Sidarta aponta que, há milênios, durante a evolução do homem, o sonho teve um papel concreto. Se o sujeito sonhasse que havia um leão próximo a um rio, tomaria mais cuidado da próxima vez que fosse até um rio. O sonho é uma criação de modelos de realidade. Se você tem os pais muito velhos e começa a sonhar com a morte deles, está na verdade se preparando para esse evento. Sonhar nos prepara para o confronto com a realidade.