Acompanhado de sua inseparável viola, Almir Sater volta a Porto Alegre. Ele faz show nesta sexta-feira (25), no Teatro do Bourbon Country, a partir das 21h. Os ingressos estão esgotados. No repertório, estão previstos clássicos de sua carreira, como Tocando em Frente e Trem do Pantanal, além de faixas dos recentes álbuns AR (2015) e +AR (2018), ambos em parcerias com Renato Teixeira, além de alguma novidade do disco Do Amanhã Nada Sei (2022), que saiu em outubro. Neste seu 10º disco de estúdio, o cantor e violeiro apresenta 10 faixas — oito compostas em parceria com Paulo Simões, uma com Teixeira e outra com Luiz Carlos Sá. Referência do regionalismo brasileiro, o músico de 66 anos novamente obteve grande visibilidade após participar da nova versão da novela Pantanal, vivendo o chalaneiro Eugênio — ele também atuou na primeira edição, na Rede Manchete, em 1990. Nesta entrevista, o artista fala sobre o disco novo, Pantanal, o show e o Brasil atual.
Qual foi o ponto de partida para Do Amanhã Nada Sei?
Eu tinha feito dois discos com o Renato Teixeira. Gostei tanto dos resultados desses dois trabalhos que continuei na mesma levada. Só que mudei: tinha gastado minhas músicas com o Renato, então abri um bauzinho das minhas músicas com Paulo Simões, que é outro parceiro muito constante na minha carreira. Tiramos oito canções. Pela primeira vez, fiz uma música com Luiz Carlos Sá (que forma a dupla musical Sá e Guarabyra), Eu Sou Mais do que Sou. E o Renato mandou uma poesia para mim quando eu estava no Pantanal, musiquei-a e a incluí no disco. É um álbum de um caminho que já venho trilhando desde AR. São músicos diferentes, mas o jeito de gravar é parecido.
Parte do disco foi concebida enquanto você também gravava suas cenas de Pantanal. Como foi conciliar essas atividades?
Algumas músicas do disco eu fiz enquanto esperava uma cena ou outra, na chalana. Estava sempre com a minha viola na mão. Ficava tocando, criando canções. Quando chegava em São Paulo, nas horas vagas, vinha na Serra da Cantareira, onde há um pequeno espaço em que gravo os meus discos. Ia registrando. Fiz as bases. Meu produtor, Eric Silver, que é um excelente músico também, pegava esse material embaixo do braço e ia para Nashville. Eu ficava no telefone, acompanhando de fone de ouvido. Então, é um disco simples, mais eu e o Eric. Praticamente nós preenchemos os espaços, deixando a parte da base — bateria e piano — para convidados.
Você voltou a ter o disco produzido pelo Eric Silver, algo que ocorreu nos seus dois trabalhos anteriores. Como é trabalhar com ele?
Conheci o Eric quando fui gravar um disco no final dos anos 1980, lá nos Estados Unidos. Precisei de vários tipos de instrumentos e o pessoal sempre falava: "Eric toca isso, Eric toca aquilo". Era um coringa. Quando ele chegou para gravar o álbum, gostei muito dele. É um cara educado e atencioso. Apesar de ele não falar nada em português e eu não falar inglês, nos demos bem. Mas falei, de alguma maneira, para que ele fosse visitar a gente quando viesse ao Brasil. Logo em seguida, Eric começou a frequentar o país e a minha casa. Depois de 25 anos de amizade, eu o chamei para produzir. Estava começando a preparar o disco com Renato Teixeira, mas achando um som muito parecido com o que já tinha feito antes. Uma mesmice. Quando Eric apareceu, eu sugeri de tentarmos de um jeito diferente. Gostei do resultado. É um cara talentoso. Faço minha viola e ele já faz o contrabaixo, sentindo a pulsação da música. Nosso trabalho rende quando o Eric está junto. Então, trouxe isso para Do Amanhã Nada Sei. Realmente, Eric me ajudou muito. Ainda mais agora que estava gravando novela, muitas coisas eu delegava para ele: "Ó, resolve aí". E resolvia bem. É um cara que sabe respeitar a sua música. Eric acrescenta, não muda.
A faixa que dá título ao disco, Do Amanhã Nada Sei, evoca um sentimento de desbravamento, mas também uma certa noção de desprendimento com o tempo. Você canta: "Ontem pra mim está morto/ Do amanhã nada sei". Você consegue se identificar com esse eu lírico da música?
Ele é um aventureiro, que sai para o mundo. Um lobo solitário. Um navegador solitário. Essa imagem me encanta bastante. Encaro como fantasia, mas sempre que fazemos alguma música, ela tem um pouco da gente. Gosto muito de barco. Fiz um papel de chalaneiro na segunda versão de Pantanal. Compus essa música dentro da chalana. Do Amanhã Nada Sei foi inspirada numa canção do Mark Knopfler chamada Je Suis Désolé. Pedi autorização, mas o pessoal me disse que eles não costumam autorizar versão. Aí parei, virei à direita e resolvi fazer a minha própria música.
Um pouco sobre a temática da passagem do tempo que há em Do Amanhã Nada Sei aparece também em Ave Chamada Tempo, mas essa é mais contemplativa.
Nesse caso, Renato mandou uma poesia e eu fiz a música. É difícil trabalhar assim. Prefiro tocar junto com os meus parceiros, acho mais divertido. Quando escreveu a poesia, Renato estava recém-casado, perto de chegar aos 80 anos (o músico tem 77). Acho que ele estava pedindo tempo mesmo, Renato está gostando disso aqui. "Ave chamada tempo/ Abre as asas sobre mim" é um jeito de dizer que está bom (risos).
Se você for analisar os meus discos, sempre tem uma pitadinha dessa crítica sociopolítica bem humorada. Temos de ter humor para criticar, afinal, são tantas aberrações que a gente vê por aqui, às vezes inclusive no setor público. E quem sustenta isso somos nós, o que pode nos dar uma certa indigestão. O humor ajuda, nesse sentido
ALMIR SATER
Há duas músicas nesse disco que procuram dialogar com a situação do país ou que, ao menos, expressam um desconforto com questões sociopolíticas. Começando pela bem-humorada Angu com Caroço. Há um trecho que diz: "Pra cortar desperdício nunca está disposto/ Pra essa do gente do mal, o ajuste fiscal sai do nosso bolso". Como Angu com Caroço reflete o Brasil de hoje?
Se você for analisar os meus discos, sempre tem uma pitadinha dessa crítica sociopolítica bem humorada. Temos de ter humor para criticar, afinal, são tantas aberrações que a gente vê por aqui, às vezes inclusive no setor público. E quem sustenta isso somos nós, o que pode nos dar uma certa indigestão. O humor ajuda, nesse sentido.
O que disparou a criação de Angu com Caroço?
Foi quando os protestos estavam na rua, aquela coisa do impeachment (de Dilma Rousseff). As coisas estavam meio convulsionadas naquela época, algumas benesses do funcionalismo público, algumas mordomias… A gente achava isso meio absurdo e fizemos essa música.
Você não acha que Angu com Caroço segue atual?
Vai ser sempre atual. Se você voltar 15 anos, vai continuar sendo. Vem sendo atual faz tempo, desde a época da nobreza. Mas espero que não siga atual daqui a 20 anos...
Já Verdade Absoluta fala que "Com seus reinos virtuais/ As notícias do momento/ Nem parecem ser reais", além de que "só vemos o que sai de dentro da tela de cristal". Parece ser uma música sob medida para estes tempos de fake news pelo WhatsApp e redes sociais, o que vimos muito nos últimos tempos, especialmente durante as eleições. Que contexto você buscou refletir com essa música?
Estou falando com você por uma tela de cristal (videochamada). O mundo começou a se conectar muito rápido. É quase telepatia: você pensa na pessoa e já fala com ela. É muito bom, mas assustador ao mesmo tempo. Essa letra surgiu no começo da pandemia, estávamos naquela incerteza se íamos voltar a fazer show, como ia ser. Estávamos pessimistas, com medo.
O que você fez durante a pandemia?
Com meus shows todos cancelados, peguei minha família e levei ao Pantanal. Trabalhamos muito. Numa fazenda, sempre há trabalho. Até que chegou o pessoal da Globo com a ideia de fazer o remake da novela. A partir dali, fomos conversando e as coisas foram se encaixando. O resultado a gente viu na tela.
Você esteve em Pantanal como Eugênio, o condutor da chalana. Como foi voltar a atuar em Pantanal e dar vida a esse personagem?
Foi uma emoção dupla. Fazer uma novela como Pantanal já é um prêmio. Participar duas vezes dessa novela, então... Ainda mais com o mesmo resultado, mesmo sucesso. São épocas diferentes, mas as emoções são parecidas. Ambas as versões comoveram o Brasil. Sempre vejo um pessoal comentando que está órfão porque não tem mais a novela para ver. É uma coisa prazerosa você chegar em casa à noite, ligar a TV e ver aquelas imagens lindas e ouvir aquelas músicas. Uma novela meio fantasia, meio séria. Fiquei muito feliz de participar novamente.
Estar em uma novela de tanto sucesso te ajudou a trazer um novo público? Teve gente mais jovem te descobrindo?
Sempre vai ter uma nova geração. O Brasil é um continente. De repente, você está falando com milhões de pessoas ao mesmo tempo. É muita gente vendo. Tenho feito muito show em praça pública agora. Me chamam de "chalaneiro", me pedem Cavalo Preto, e eu respondo que era de outra turma na novela (risos). Sinto que o personagem me aproximou de um público mais jovem, que acabou conhecendo meu trabalho como músico. Isso aconteceu na primeira versão também, de maneira mais forte, até. Saí de um quase anonimato para um sucesso estrondoso na TV. Essa nova novela aqueceu tudo novamente.
Uma das cenas mais emocionantes de Pantanal foi quando você e seu filho (Gabriel Sater) protagonizaram um duelo de viola. Como foi dividir esse momento com ele?
Aconteceu com o Gabriel a mesma coisa que aconteceu comigo quando fiz esse papel há 30 anos, de sair de uma situação de quase anonimato para uma grande vitrine. Comecei a tocar no Brasil inteiro, meu trabalho foi sendo conhecido. Tudo o que eu queria na vida aconteceu com Pantanal. Agora, o mesmo se sucede com Gabriel. Vejo ele viajando o Brasil, mostrando o trabalho dele. Na novela, ele teve de se dedicar à viola caipira porque tinha esse duelo. O autor (Bruno Luperi) nos avisou com antecedência, mas tentei argumentar que o Gabriel é violonista. Ele respondeu: "Mas agora ele vai ser violeiro". Falei para o Gabriel se preparar. Meu filho toca muito bem violão, o que facilita aprender viola. Foi bom para ele. É um violonista de música erudita, que estudou e se dedicou. Tem pegada. Sinto que para ele foi muito bom. Nos preparamos e estudamos muito para esse duelo, para entregar uma coisa que nos emocionasse também. A partir dali, Gabriel virou um violeiro (risos).
O que te despertou para a viola?
Sempre ouvi muito o som da viola no rádio. Até que a conheci pessoalmente. Larguei todos os instrumentos que eu tinha e comecei a me jogar na viola. Senti que eu rendia tocando viola. Acho que estávamos prometidos um para o outro.
Não vejo o porquê de lançar mídia física hoje em dia. A não ser para os colecionadores. Eu gostei dessa coisa virtual, dá uma liberdade para o artista que ele nunca teve. Hoje em dia, gravar ficou fácil, qualquer um pode fazer isso em casa. Também é bom não depender de nada industrial, nos sentimos mais livres para trabalhar
ALMIR SATER
Voltando a falar de Do Amanhã Nada Sei. Esse é seu primeiro álbum lançado exclusivamente no formato digital. Haverá formato físico?
Provavelmente vamos disponibilizar uns CDs, talvez no fim do ano, pois meus amigos e minha família me cobram para fazer isso. Um tempo atrás, fui dar um CD de presente para alguém e o cara falou que nem tinha mais onde tocar essas coisas. Comecei a perceber que o mundo está mudando. Se a gente puder levar as músicas para as pessoas, de uma forma comercial e interessante, com boa qualidade, está ótimo. Ainda mais sem deixar lixo depois que o objeto fica inutilizado. Quanto menos resíduos você deixar no planeta, menos pecado. Quando você não gosta mais do CD, não serve para nada. Não sei quanto tempo leva para dissolver. É melhor se a música pode chegar dessa forma, limpa e voando. Não vejo o porquê de lançar mídia física hoje em dia. A não ser para os colecionadores. Eu gostei dessa coisa virtual, dá uma liberdade para o artista que ele nunca teve. Hoje em dia, gravar ficou fácil, qualquer um pode fazer isso em casa. Também é bom não depender de nada industrial, nos sentimos mais livres para trabalhar. Essas facilidades me encantaram muito.
Então hoje você só consome música por streaming?
Sim. Só escuto música no meu telefone. Às vezes, no som do carro, pelo bluetooth. Está tudo voando. Quero voar também.
O que se pode esperar de seu show?
Meu show é o mesmo há 50 anos. Só que vão entrando umas canções, enquanto outras vão saindo. Às vezes ao lado de músicos diferentes, mas o meu som é esse, não muda muito. Eu estava realizando apresentações em que trazia muitas músicas do disco AR, além de algumas canções do meu repertório que não podem faltar. Como a pandemia bloqueou esse show, fiquei com vontade de quero mais. Então, estou voltando com esse show, mas também mostrando alguma novidade do disco Do Amanhã Nada Sei.
Sua ideia é ir incluindo aos poucos as músicas do novo disco no repertório do show?
À medida que essas faixas estão soando bem, vou incluindo no repertório. As músicas que estão no show já soam bem. Não vou tirar uma música que está toda bonita para uma em que estamos ainda vacilantes.
Como é sua relação com o Rio Grande do Sul? O que você costuma gostar daqui?
Gosto muito do jeito gaúcho de ser. Quando fiz a novela Ana Raio e Zé Trovão (1991), morei uns 20 dias em Santa Rosa e uns 20 dias em Piratini. Por lidar com gado, somos um pouco gaúchos também. Nossos costumes, no Pantanal, são um pouco parecidos. Nós mateamos cedo e à noite. Pessoal toma tererê, mas de manhã é sempre o chimarrão. Temos nossas vestimentas parecidas. Então, somos primos. Musicalmente, é um pouquinho diferente, mas somos próximos também. Gostamos do chamamé, do rasqueado, essas influências latinas. Vocês têm a Argentina do lado, enquanto temos o Paraguai. A alma guarani está muito entranhada nas nossas fronteiras. O Rio Grande do Sul é um lugar em que gosto muito de tocar. Valorizo muito o jeito que vocês defendem sua cultura, é um exemplo para o Brasil. Quero fazer muitos shows lindos para vocês ainda.