Após cinco anos desde seu último trabalho, Salvavidas de Hielo (2017), o cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler acaba de lançar seu novo álbum, Tinta y Tiempo. Trata-se de um disco elaborado em meio à dificuldade criativa vivenciada durante a pandemia, mas que explora diferentes sonoridades e questões íntimas ao músico. Quando vem a Porto Alegre, cidade que ele conhece bem, Drexler costuma preencher de fãs todo espaço em que toca. Não deverá ser diferente na apresentação prevista para 25 de setembro, no Auditório Araújo Vianna, que na manhã desta quinta-feira (28/4) estava com ingressos praticamente esgotados. Nesta entrevista, Drexler fala sobre Tinta y Tiempo, sua relação com a capital gaúcha e até sobre um festival de cinema particular.
Tinta y Tiempo é seu primeiro disco em cinco anos, desde Salvavidas de Hielo (2017). O que te levou a realizá-lo? Foi fruto do período pandêmico?
Na pandemia, passamos por esse momento tão especial da vida, tão diferente dos acontecimentos normais. Tive duas reações. A primeira foi uma necessidade de relatar esse período, de falar do medo, da distância, da nostalgia da vida, da ausência de contato, da constatação do efêmero da vida. Essa foi a primeira reação que eu tive, mas depois que elaborei várias músicas sobre essa situação de pandemia, sobre o medo e a morte, pensei o seguinte: “No futuro, eu não vou querer cantar isso, mas sim o oposto”. Foi a segunda reação: a celebração da vida. Ou a celebração do amor e da arte. Então, comecei a escrever músicas que tinham esse colorido. Queria um disco cheio de cores e com orquestra. Cheio de ritmos e sonoridades. Com muita variação de músicas.
A música de abertura, El Plan Maestro, aborda justamente a origem da vida, do amor e do sexo. No final, você conclui que o amor acaba sendo o objetivo principal do processo todo. Como surgiu essa composição?
Eu queria que o disco falasse desde a invenção do amor no período mesoproterozoico, 1,6 bilhão de anos atrás, quando as duas primeiras células se juntaram e formaram outro indivíduo, inventando o sexo e o amor. É aí que começa a história do álbum. Por isso El Plan Maestro é a primeira faixa. Tenho uma prima que é astrofísica. Ela é uma fonte de inspiração. Somos melhores amigos desde a infância. Ela mora na Venezuela e faz muito tempo que não a vejo diretamente, mas temos uma correspondência muito rica. A última música que escrevi de Salvavidas de Hielo, chamada Despedir a Los Glaciares, foi feita em parceria com ela. O mesmo se repetiu El Plan Maestro, que foi a primeira música que escrevi para Tinta y Tiempo. Minha prima me contou, pelo WhatsApp, que o amor não existiu sempre: foi criado pela natureza, e foi um invento muito bom. Um invento útil, mesmo do ponto de vista biológico. Primeiro as células se dividiam sozinhas, uma se transformava em duas. Aí veio o fato de duas células diferentes se unirem e formarem uma terceira. A combinação de material genético produz um aumento exponencial das possibilidades de mutação e de novidades genéticas. A Terra foi formada há 4,5 bilhões de anos. Nos primeiros 2,4 bilhões, a vida foi muito monótona. Acontecia tudo na água, só havia organismos unicelulares. Mas, depois que as células começaram a se mesclar, em poucos milhões de anos a vida explodiu, cores e formas saíram do mar e adentraram a terra e a natureza. Animais, plantas, flores, dentes. Tudo aconteceu relativamente rápido. Ela me ensinou que o amor demonstrou ser uma estratégia de sobrevivência muito boa. Quando o asteroide caiu na Península de Yucatán, no México, os dinossauros foram praticamente extintos (conhecido como Chicxulub, o asteroide que encerrou a presença dos dinossauros no planeta e alterou a evolução da vida na Terra). Aqueles que tiveram mais possibilidade de sobrevivência eram os que cuidavam de seus ovos. Todo o tempo canto sobre o amor, mas eu queria fazer uma aproximação do amor desde o ponto de vista evolutivo e biológico. Nessa música procurei falar que o amor é um objetivo, de forma a ser um plano-mestre, que é o melhor plano.
O disco segue com Corazón Impar. Parece-me que fala de uma pessoa que carrega um sentimento de insegurança ("Tu corazón sin par/ El mío desparejo/ Siempre escapándome/ Nunca llegando lejos (...) A veces me pregunto/ ¿Cómo és que acabamos juntos?”). Que tipo de relação você quis descrever aqui?
É uma canção de amor, mas de amor real e complexo. Uma canção para o meu amor, a minha esposa (Drexler é casado com a atriz espanhola Leonor Watling desde 2008). Fala de um amor verdadeiro que inclui esse tipo de incompreensões e mistérios. A identidade das pessoas é infinitamente densa. Quanto mais perto você chega de um indivíduo, quanto mais você o conhece, fica cada vez mais complexo. Corazón Impar fala de uma pessoa que é muito próxima a você, e certas complexidades são difíceis de serem percebidas de longe. É uma canção de amor e proximidade, mas também sobre o assombro ante a complexidade da pessoa amada. Acho que é a minha faixa favorita desse disco para cantar ao vivo. É uma música muito direta de tocar. No meio dela, a música explode e se abre. (Cantando:) “Va por los tejados/ tu corazón felino/ para poderlo entender/ habría que ser adivino”. Aliás, acho que nesse trecho há um sentimento um tanto pandêmico. Essa coisa que você tinha de abrir a janela da casa e sair pelos telhados na sua imaginação. Ficamos muitos meses olhando só os telhados das outras casas. Nossa conexão com o mundo era limitada a isso.
Já Cinturón Blanco traz uma proposta para reiniciar uma relação, em uma tentativa de reviver as primeiras emoções (“Rebobinar hasta aquel inicio/ Hasta el mismo precipicio por el que caímos juntos”). É uma tentativa de reconciliação ou trata-se de uma busca pela fuga da rotina?
Sair da rotina. Procurar uma reconciliação é mais fácil do que sair da rotina, que é muito difícil. No fundo da música, você chega a perceber certa melancolia em que isso não é totalmente possível. Na letra, há um casal de longa data consciente de que o importante é tentar, fazer o esforço. Mas não é fácil.
Por que “Cinturón Blanco”?
Tenho um amigo que conhecia uma escola de artes marciais que tinha três faixas: o branco para o iniciante; o preto para alguém mais experiente com a técnica; e branco para o mestre que consegue esquecer o que aprendeu e olha o mundo com os olhos de principiante, mas com toda a técnica dentro de si. Alguém que transcende a técnica. Adorei essa história e quis aplicar a um casal, querendo propor uma maneira de voltarmos a sermos principiantes de novo. Somos experts um do outro, sabemos tudo. Mas vamos nos esquecer. Queimar os álbuns de fotos, queimar o passado, nos olhar como se fosse a primeira vez e cair pelo precipício de novo. Tentar, pelo menos.
A gente não pergunta ao oráculo ou a Deus as grandes e pequenas questões da vida, mas ao algoritmo. A canção também procura trasladar essa experiência da pergunta de modo criativo, como se indagasse: ‘O que devo escrever?’. Foi muito difícil ser compositor durante a pandemia.
Também há uma canção no disco sobre algoritmos (¡Oh, Algoritmo!) e como controlam nossas vidas (“¿Quién quiere que yo quiera lo que creo que quiero?/ Dime qué debo cantar, ¡Oh, Algoritmo!/ Sé que lo sabes mejor, incluso, ¡que yo mismo!”). Muito se fala que esse fator também está ditando a forma de fazer arte. Como é ser um artista na era dos algoritmos?
O algoritmo virou o novo oráculo da sociedade. A gente não pergunta ao oráculo ou a Deus as grandes e pequenas questões da vida, mas pergunta o tempo todo ao algoritmo. “Aonde vou comprar isso?” “O que devo comprar?” “Com quem devo transar?” – no caso dos algoritmos de relacionamento interpessoal. “Aonde devo trabalhar?” “Qual o meu caminho?” A canção também procura transladar essa experiência da pergunta ao algoritmo ao modo criativo, como se indagasse: “O que devo cantar ou escrever?”. Porque há quem trabalhe assim. Já teve um momento em que pensei que seria muito mais simples se alguém me ajudasse na orientação da composição. Foi muito difícil para mim ser compositor durante a pandemia. Havia muita confusão interior. Uma sensação que não era de depressão, mas de languidez. Um sentimento de certa tristeza suave. Então, eu queria sair dessa. Em certos momentos, a gente está disposto a renunciar a nossa liberdade. O lado menos interessante das pessoas está disposto a isso para ter segurança, muitas vezes. Renunciamos a escolher e deixamos que o algoritmo dite o caminho para nós, seja na escolha de música ou em todas as outras coisas.
Esse processo de composição que tu citas é descrito em Tinta y Tiempo, faixa que dá título ao álbum, não?
Batizei o disco com esse nome porque a música resume todo o processo que foi produzi-lo. É uma “metacanção”, que fala sobre escrever músicas. E a composição foi especialmente penosa nesse disco. Eu não conseguia terminar as composições na pandemia. Como diz a segunda estrofe: “Y cuando toca decantar/ Lentamente lo que siento…”. É como servir o vinho e esperar que ele decante. Fazer com que a parte sólida seja separada. Quando não consigo pôr no papel as ideias, fico impaciente. Mas, como digo, tinta y tiempo. É uma canção que escrevi para me tranquilizar. No final eu digo: “Y al final, siempre ando a tientas/ Sin brújula en la tormenta, pero tras el desaliento/ Cada cuento/ Si ha de pintarse, se pinta”. Tenha paciência, você vai conseguir encontrar as palavras.
A delicada El Día que Estrenaste El Mundo relembra o nascimento de uma criança (“Yo con cara de sueño y de sueños/ Tú en mis brazos, la primera foto/ Mis ojos a medio camino del mar y del maremoto. (...) Y tu amor se hace mucho mayor de lo que antes pensabas”) e está dedicada aos seus filhos, como consta na relação de letras do disco. Como ser pai transformou sua vida e sua arte?
Faz muito tempo que fui pai pela primeira vez, 24 anos, já. Meu filho mais velho, Pablo, já está trabalhando de produtor musical, inclusive ele atuou neste disco. Quando fui pai pela primeira vez, meu ritmo de trabalho mudou completamente. Fiquei um ano inteiro sem escrever nada, o que nunca tinha acontecido para mim. Quando comecei a escrever de novo, tinha uma velocidade maior e mais concentrada do que eu tinha antes. Você já não dispõe de todo o tempo do mundo para isso, você precisa de um lapso, um período de tempo que necessita aproveitar muito bem. Acho que me notei mais direcionado e focado. E também o coração fica maior, com muito mais capacidade de amar, mas também mais suscetível à dor. Você fica mais vulnerável. Então, não tem jeito de isso não influenciar na música. Muda sua maneira de entender as letras e o seu próprio trabalho.
Duermevela está dedicada a sua mãe. Nessa faixa você resgatou lembranças dela?
Minha mãe se chamava Lucero. Seu nome significa “a estrela da alma”. Está relacionado, na verdade, ao planeta Vênus. Duermevela é a metade do caminho entre o sonho e a vigília. É um estado de quando você acorda pela manhã e, por alguns segundos, fica na cama ainda dentro do sonho, mas ainda consciente da vigília. Também pode ser no momento antes de dormir. Meio sonho, meio realidade. Eu sempre associei o nome dela a essa transição. Então essa palavra e essa sensação sempre me fizeram lembrar como o filho lembra do amor incondicional. O amor tão incondicional que você pode dormir nos braços dessa pessoa e confiar em um mundo seguro e de amor puro. Para essa faixa, chamei meus três filhos para trabalhar na música da vovó. Os pequenos cantam, enquanto o mais velho faz a produção.
Você volta a Porto Alegre em setembro, cidade que sempre lota os teatros para te receber. Como é sua relação com a cidade?
Eu não quero jamais fazer uma turnê sem ir a Porto Alegre. Tenho muitos amigos que admiro profundamente, como Vitor Ramil. Também há muitos lugares de que gosto: restaurantes, clubes e salas de concerto que aproveito para visitar. É um dos lugares onde eu tenho uma porcentagem maior de audiência em proporção à população. Me sinto muito querido e compreendido no Rio Grande do Sul. É uma alegria muito grande para mim voltar a Porto Alegre.
Tive duas reações (na pandemia). A primeira foi uma necessidade de relatar esse período, falar do medo, da distância, da nostalgia da vida. Mas pensei: ‘No futuro, não vou querer cantar isso, e sim o oposto’. Foi a segunda reação: a celebração da vida. Ou a celebração do amor e da arte. Então comecei a escrever músicas que tinham esse colorido.
Como foi voltar aos palcos depois de um tempo compulsoriamente afastado?
Lembro-me até hoje do momento que cheguei para a passagem de som e falei novamente ao microfone após tanto tempo. Senti minha voz grande no microfone, amplificada. Foi um choque para mim. Aquela sensação auditiva de me ouvir em uma amplificação grande era algo que eu não sentia há um ano e meio. Uau! Era como se tivesse voltado para casa. Creio que a minha voz estava incompleta até aquele momento em que cantei no microfone de novo.
Você chegou a contrair covid-19 em duas oportunidades. Como foram esses momentos?
Tive duas experiências muito diferentes com a doença. Peguei a primeira cepa, em março de 2020, e foi horrível. Sentia medo, pois não havia hospitais disponíveis na Espanha naquele momento, estavam colapsados. Fiquei em minha casa apavorado. Ninguém sabia nada ainda da enfermidade. Toda a minha família pegou, mas felizmente todos nos saímos bem. Depois, recebi as três vacinas e voltei a pegar covid-19 por conta da Ômicron, em janeiro deste ano. Foi completamente diferente. Já tinha uma sensação de conhecer a enfermidade, já estava vacinado, quase não tive sintomas. Fiquei cinco dias em casa. Nesse tempo, realizei um festival de cinema no quarto, sozinho, e fiquei assistindo a filmes o dia inteiro (risos).
Que filmes estavam na seleção desse festival particular? Algo a destacar?
Foi muito bom! Fiz um festival de cinema israelense. Teve uma diretora que adorei, a Hadas Ben Aroya. Ela é incrível! Por enquanto, essa diretora só tem dois longas-metragens: Mishehu Yohav Mishehu, de 2016, e Anashim Shehem Lo Ani, de 2021. Nesses filmes, ela aborda as intimidades das novas gerações – o sexo, a vida, as motivações. Seus filmes são muito inteligentes, e ao mesmo tempo são bastante intimistas.