Para Salomão Borges Filho, ou simplesmente Lô Borges, 2022 está bem preenchido com datas redondas para comemorar. Em 10 de janeiro, o mineiro celebrou 70 anos. Dois trabalhos seminais de sua trajetória completam cinco décadas: Clube da Esquina, álbum histórico em que trabalhou com Milton Nascimento, e o famoso “Disco do Tênis”, seu primeiro trabalho solo, chamado desse modo por conta da foto de um par de tênis na capa.
Mas o ano também é de muito trabalho: Lô lançou Chama Viva em março, seu quarto disco em quatro anos. E o cantor e compositor começa a retomar a sua rotina de shows. Em entrevista a GZH, ele fala sobre todos os aniversários que comemora em 2022, o novo disco e seu processo de composição.
Como surgiu Chama Viva?
Estava próximo ao processo mixagem do meu álbum de 2021, Muito Além do Fim, que era mais voltado para guitarras. Uma coisa mais pesada e rock and roll. Era um clima de adrenalina. Tive uma semana de intervalo antes da mixagem. Nesse período, liguei o teclado no modo órgão – eu sempre ligava como piano. Sou compulsivo para compor. Então, me veio uma música, me veio um som totalmente espacial, muito diferente daquilo em que estava trabalhando. Foi algo que me fez bem. Já no primeiro dia compus uma música. Então, convidei uma amiga, a escritora e compositora Patricia Maês para escrever a letra dessa canção. Mas nem nos meus melhores sonhos eu imaginava que depois dessa música faria mais seis composições. Em só seis dias! Foi um mergulho no instrumento. Aquilo serviu para mim até como um refresco para a adrenalina de Muito Além do Fim.
Praticamente um contraponto.
Exato. Um bálsamo para a minha cabeça. Havia um outro tipo de som que me habitava que não era o disco com o qual eu estava envolvido. Aos poucos fui mandando as outras faixas para a Patricia, que foi escrevendo letras superinspiradas. Em comparação ao álbum anterior, é um disco bem mais denso. Uma das coisas que me estimulam é ser diversificado.
Nas letras de Chama Viva, Patricia aborda as forças da natureza e as energias cósmicas.
Ela fez letras cinematográficas. Eu achava que as músicas lembravam as trilhas de cinema. Patricia acertou em cheio, escreveu letras muito compatíveis com o que minhas composições propunham, que era uma coisa com mais imagens tangíveis. Imagens que você quase pode tocar. Fiquei tão feliz, ela mergulhou comigo no meu universo do órgão.
Você e Patricia Maês já haviam trabalhado juntos antes, em Horizonte Vertical (2011). O que você destacaria da Patricia?
Em Horizonte Vertical, ela compôs cinco letras. É uma letrista de mão cheia. Também é escritora, que produz contos e romances belíssimos. E é estudante de astronomia. Em certas letras, tive que consultar o Google, pois estava falando de coisas do cosmo. Hoje o Google é o novo pai dos burros (risos). Em No Colar, por exemplo, há um verso falando em “forma clusters no chão”. O que é cluster? Eu não sabia (risos). Patricia é erudita e sofisticada, mas também pode ser casual e cotidiana.
Além da Patricia, Chama Viva conta com participações de Milton Nascimento, Beto Guedes e Paulinho Moska. Bituca marca presença na bela Veleiro. Como foi voltar a contar com a contribuição de seu antigo parceiro?
Foi emocionante contar com o Milton. Ele não participava de uma canção minha desde 2011, em Horizonte Vertical, que por coincidência era uma letra da Patricia também, uma música chamada Da Nossa Criação. Achei que estivesse fazendo um disco sinfônico. Quando os arranjos estavam quase prontos, falei para a Patricia que queria chamar uns artistas de que gosto para cantar comigo. Os convidados todos trouxeram tanta luz, tanta energia, que era o que faltava. Sem eles, talvez Chama Viva ficasse hermético demais.
Em entrevista, você comentou que esse disco tem a energia da ioga. Por quê?
O mergulho em canções mais densas e profundas remete a uma coisa da respiração. Acho que as músicas são como se eu estivesse respirando profundamente. Esse é o princípio da ioga, você respirar, alongar e relaxar. Quando compus essas músicas, fiquei respirando e relaxando de uma maneira diferente. Era algo que eu estava precisando. Nunca fui a fundo na ioga, mas acho que a gente consegue fazer ioga ao criar música. Música pode ser arte marcial. Pode transcender todas as artes. É meu alimento espiritual. Há pessoas que vão para a academia e fazem musculação para o corpo. Enquanto faço música, estou fazendo ginástica com o espírito e a cognição. Considero fazer música o mesmo que malhar.
E a ginástica mesmo, você encara?
Já tive meus momentos, jogava futebol... Mas estou com 70 anos. Na pandemia, não queria ficar em casa triste, mas sim compondo. Por isso fiz esses discos, um atrás do outro. Compus mais músicas do que minha capacidade de lançá-las.
Foi um período rico criativamente.
Sim. Mergulhei na composição. Sou assim. Se pego, por exemplo, uma viola caipira com afinação totalmente diferente, faço uma música. E, de repente, componho mais nove. Faço um disco. Não guardo música em casa. Vou para o estúdio. Durante a pandemia, eu só saia de casa para ir ao estúdio levar minhas músicas. Não me agrada fazer isso em casa, acho que arranjo e gravação têm de ser em estúdio.
Chama Viva é o quarto disco de inéditas em quatro anos, o que evidencia a sua produtividade ao completar sete décadas de vida. Estaria nos planos um quinto disco em cinco anos?
Tenho material para lançar disco anualmente até 2025. Compus mais de 40 músicas em dois anos de pandemia, todas direcionadas aos respectivos letristas, que não vou revelar quais são. Então, estarei me permitindo a fazer turnê neste ano. Acho que agora vou esquecer a composição e retomá-la em 2023.
Dois discos significativos para você e para a história da música brasileira completam 50 anos em 2022. Começando pelo Clube da Esquina. O que você gosta de lembrar dessa fase?
Esse disco foi produzido dentro de um espírito de criação. Queríamos fazer uma obra de arte. Não tínhamos a intenção de tocar música para vender milhões ou fazer sucesso no verão. Foi um encontro cósmico de pessoas certas, no lugar certo e na hora certa, capitaneadas pelo Milton Nascimento, que teve a grande generosidade de me convidar. Eu era um adolescente desconhecido, me preparava para fazer vestibular. Ele me convidou para morar no Rio, dividir um álbum chamado Clube da Esquina, que homenageava a nossa parceria. Homenageava a esquina do meu bairro, onde eu ficava tocando violão com os amigos. E eu era o cara do violão na turma, tocava Chico Buarque e Beatles. Na hora em que todo mundo ia embora, eu ficava sozinho na esquina tocando violão e compondo. Milton quis homenagear isso. Antes, em 1970, ele já tinha gravado a primeira composição minha que fez sucesso, Para Lennon e McCartney. Essa eu compus aos 17 anos, com letra de Fernando Brant e Marcio Borges. Milton deve ter percebido que eu tinha jeito para a coisa (risos). Fui morar com ele no Rio e foi muito legal. Era a época da ditadura, minha mãe não queria que eu fosse. Falava que juntar três ou quatro pessoas num apartamento poderia ser considerado a montagem de um aparelho subversivo. Meu pai que a convenceu. Viu que era uma oportunidade enorme para mim.
O ‘Clube da Esquina’ foi produzido dentro de um espírito de criação. Foi um encontro cósmico de pessoas certas, no lugar certo e na hora certa, capitaneadas pelo Milton Nascimento.
Houve outros obstáculos no processo?
A gravadora achou que o Milton havia enlouquecido. Lô Borges? Nunca tinham ouvido falar desse nome, um cara que está mudando a voz ainda, pouco mais que um adolescente, e o Bituca querendo dividir um álbum duplo com ele. Mas o Milton bateu o pé: se não fizessem o projeto do jeito que queria, ele trocaria de gravadora. Devo muita coisa para esse cara, ele me bancou mesmo. Então, viram as músicas do Lô Borges: Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, Paisagem da Janela, O Trem Azul, Nuvem Cigana, Tudo que Você Podia Ser. Devem ter pensado: “É, o Milton tem razão, o cara leva jeito”.
Tanto que lhe convidaram para fazer o “Disco do Tênis”. Como foi isso? Você se sentia preparado?
Com aquela irresponsabilidade juvenil, assinei um contrato sem ter nenhuma música para um disco, que seria lançado dali a seis meses. Fiz um disco experimentalista, caótico, psicodélico e maluco. Como dizia meu filho aos 10 anos, hoje com 23, quando perguntavam para ele o que achava do “Disco do Tênis”: “Meu pai fez coisas malucas de lugares distantes”. Pessoal da gravadora deve ter ficado muito decepcionado, pois o álbum não tinha nenhuma canção mais palatável como Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e O Trem Azul. Era a psicodélico. E tudo feito no sufoco. Tanto quem quando terminei o disco, saí do Rio, abandonei momentaneamente a carreira.
Por quê?
Queriam que eu fizesse outro disco para lançar 1973, mas eu precisava me estruturar como compositor. Primeiro que eu não queria morar no Rio. Sequer queria fazer foto para divulgação. Falei para o Cafi (fotógrafo) tirar a foto do meu tênis velho, e só. Não queria ter a obrigação de gravar disco.
A foto era quase um teaser do que você faria.
Botar o pé na estrada! Peguei na gravadora uns 20 exemplares do disco e comecei a viajar pelo Brasil. Primeira coisa que fiz foi pegar um ônibus na rodoviária do Rio de Janeiro para Porto Alegre.
Como foi essa primeira parada em Porto Alegre?
Tinha um amigo que morava com o pai dele, num apartamento pequeno em Porto Alegre. Passava os dias nas praças. Ia às universidades ou parques, onde tivesse jovens cabeludos igual a eu tocando música. Levei meu violão na viagem, claro. Eu me enturmava com o pessoal. Ninguém conhecia o Clube da Esquina, imagina o “Disco do Tênis” (risos). Eram álbuns que recém tinham saído. O pessoal da minha geração estava em outra. Estava ligado em Jimi Hendrix.
A ditadura empoderava quem era autoritário, enchendo a pessoa de vontade de botar para quebrar.
Você ficou por quanto tempo na cidade?
Dez dias. Teve uma hora que não aguentei, pois, além do apartamento ser pequeno, esse pai do meu amigo era meio ranzinza. Aí fui para uma pensão no centro. Mas saía muito para a rua. Teve um dia em que dormi em um banco de uma praça, com o violão ao meu lado...
E depois?
Fui de carona em caminhão para Arembepe, na Bahia. Virei hippie de vez! Fiquei por lá tomando banho de mar e tocando violão. O Rio de Janeiro estava me sufocando. Não queria compromissos, queria viajar. Fiquei uns meses rodando, até voltar para Belo Horizonte. Minha mãe me recebeu espantada: “Você está anoréxico! E barbudo! E cabeludo! Você está estranho, filho” (risos).
Clube da Esquina e o “Disco do Tênis” foram gravados durante a ditadura, o que aparece em algumas letras – Como um Machado, por exemplo. Esse contexto da época pesava no processo de composição das músicas?
No meu caso, sim, porque o AI-5, promulgado um pouco antes, em 1968, garantia a manutenção do autoritarismo. Conferia essa coisa violenta de alguma autoridade poder entrar na sua casa sem mandado judicial. Mas sabe com o que eu sofria mais? Com a prensa da polícia por ser cabeludo. Naquela época, ter cabelo grande era ser subversivo. E eu não queria cortar, gostava do jeito que era. Fui várias vezes abordado pela polícia na rua, de maneira truculenta, com eles querendo me levar preso. Aliás, uma fez fiquei preso uma semana em Paraty (RJ). Fui até lá conhecer o lugar, mas quando cheguei na rodoviária, viram que eu era cabeludo, me levaram para a delegacia. Não acharam droga nenhuma comigo e mesmo assim me deixaram uma semana preso. A ditadura empoderava quem era autoritário, enchendo a pessoa de vontade de botar para quebrar.