Pela última vez, Milton Nascimento premiou Porto Alegre com sua voz. Bituca se postou no centro do palco armado no Ginásio Gigantinho, às 18h40min, dando início à sua despedida do público gaúcho. Era sua última apresentação no Rio Grande do Sul.
Milton desembarcou na capital gaúcha com a derradeira turnê A Última Sessão de Música, em que está se despedindo dos palcos. Prestes a completar 80 anos em 26 de outubro, além de seis décadas de exitosa trajetória, Bituca está realizando sua última série de shows, que será encerrada no dia 13 de novembro, com apresentação no estádio Mineirão, em Belo Horizonte. Diabético e com mobilidade reduzida, ele quer descansar da estrada — mas não da música, como contou em entrevista a GZH. Seguirá compondo e gravando.
Foram mais de 60 anos cantando com seu vocal doce e profundo — a ponto de Elis Regina sentenciar: “Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton” —, registrando uma discografia contundente (43 álbuns gravados) e compondo canções que se tornaram seminais para a MPB. Bituca domina a arte de compor, sendo dotado da capacidade de construir melodias poderosas e harmonias sofisticadas, além de traduzir o presente em poesia fluída. Quem viu a apresentação deste domingo, pôde comprovar ao longo de 1h45min.
Mas antes de Milton se apresentar, Zé Ibarra fez um pocket show de abertura. Integrante do grupo Bala Desejo e violonista e vocal da banda que acompanha Bituca, ele subiu solitariamente ao palco empunhando violão e transmitindo uma serenidade digna de Clube da Esquina durante pouco mais de 20 minutos.
Com um Gigantinho tomado por 4,5 mil pessoas, o show de Milton teve como prelúdio um vídeo com ele falando sobre sua carreira, que já serviu para emocionar o público.
Então, surge o som de trem passando por uma estação, apitando, que em seguida se transformou no instrumental de Tambores de Minas, faixa resgatada do disco Nascimento (1997). As cortinas, enfim, se abriram. Milton surgiu no centro do palco, sentado com sua sanfona. Ponta de Areia, do álbum Minas (1975), foi a primeira música.
Composta em parceria com Fernando Brant, a canção fala do fim da ferrovia que ligava Minas Gerais ao sul da Bahia. Natural do Rio de Janeiro, Milton foi criado em Três Pontas, no interior mineiro, onde se entrelaçou com a música barroca do Estado. "O mais mineiro de todos os cariocas", como costuma se definir.
Bituca vestia um manto de cores quentes, que foi desenvolvido pelo estilista mineiro Ronaldo Fraga. Segundo Fraga contou em entrevista, esse figurino atua como se fosse uma colcha de ideias, uma síntese da trajetória do músico, trazendo elementos e palavras do repertório.
A partir daí, o Gigantinho ficou tomado por uma atmosfera etérea, como se algo sagrado estivesse acontecendo no palco. De fato, havia uma entidade da história da música ali, dando tchau.
O show seguiu com Canção do Sal, que foi lançada originalmente por Elis Regina, em 1966. Após a música seguinte, Morro Velho, Milton tirou o manto e passou a usar óculos escuros. Agora usava um fardão em tons azuis, com bordados de estrelas, pássaros e árvore. Em seguida, foi a vez de falar com a plateia e saudar uma velha amiga:
— Eu só queria agradecer a vocês por tornarem minha vida tão linda. As três músicas anteriores foram gravadas pelo amor de minha vida, Elis Regina.
O show seguiu com Outubro e depois Vera Cruz, que foi cantada por Zé Ibarra. Após Pai Grande, que desarmou o público ao encerrar com os versos "Já não quero ir mais embora", teve início um bloco de Clube da Esquina. Milton lembrou que o disco clássico de 1972 foi apontado pela crítica como o melhor álbum brasileiro de todos os tempos (eleição realizada pelo podcast Discoteca Básica, que ouviu mais de 150 especialistas).
Antes de repassar faixas do álbum, esse bloco teve início com Para Lennon e McCartney, parceria com os colegas de Clube Márcio Borges e Lô Borges. Em Cais, Milton soltou a voz e mostrou que ainda tem fôlego. Aliás, o vocal do artista ainda está poderoso. Divino, como diria Elis.
Nessa parte, a versão suingada de Tudo Que Você Podia Ser animou a plateia, que acompanhou Bituca com palmas, enquanto San Vicente manteve o nível com Zé Ibarra novamente assumindo os vocais.
Antes da emocionante performance de Clube da Esquina nº 2, Milton declarou:
— Viver esse momento após 60 anos de carreira é a prova de que meus sonhos jamais envelheceram.
Depois da instrumental Lilia, que homenageia a mãe de Bituca, ele destacou:
— Essa música não tem letra, mas não há letra que espelhe a beleza dessa mulher.
Por fim, Nada Será Como Antes fechou o bloco com muita energia, com Ibarra e Milton dividindo os vocais.
Despedida
Após a instrumental A Última Sessão de Música, foi a vez de Fé Cega Faca Amolada, que clamava pela liberdade do povo brasileiro nos anos de ditadura. Em seguida, a romântica Paula e Bebeto ganhou coro no Gigantinho: "Qualquer maneira de amor vale à pena/ Qualquer maneira de amor vale amar".
Volver a los 17, que Bituca dedicou à Mercedes Sosa, foi interpretada por Ibarra e empolgou a plateia. Então, um medley com três canções regionais brasileiras: Calix Bento trouxe a Folia de Reis para o ginásio; que seguiu com a divertida Peixinhos do Mar e, por fim, Cuitelinho.
Parceria com Chico Buarque, O Cio da Terra veio na sequência. Antes de Canção da América, o público bradou "Bituca eu te amo", enternecendo Milton. Então, quando a música começou, chegou o momento para a plateia gravar a performance de Bituca e mandar para algum amigo ou amiga. Teve quem fizesse videochamada nessa hora. Pois "amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito", como ele canta.
Milton e Ibarra voltaram a dividir os vocais em Caçador de Mim. Já Nos Bailes da Vida foi dedicada por Bituca aos artistas da noite, porque "tem muita gente fazendo coisa bonita por aí". Afinal, "todo artista tem de ir aonde o povo está", já diria a composição de Milton e Brant. Aqui, o público participou acendendo as luzes de seus celulares. Emocionado, o artista exclamou:
— Essa coisa está linda!
Logo, mais um medley 3 em 1, que abriu com a instrumental Tema de Tostão, seguiu com Fazenda e fechou com a animada Bola de Meia, Bola de Gude. Até que a imponente Maria Maria fez o Gigantinho balançar. Alguns fãs na arquibancada foram liberados para a pista em frente ao palco. Um clima festivo se espalhou pelo ginásio. O tema da festa: a vida de Milton.
Entre pedidos de "mais um", o Gigantinho inteiro cantou versos a favor de um candidato à presidência da República. Quando Milton voltou ao palco, sentenciou:
— Essa próxima música já enterrou muitos presidentes.
Então, o show seguiu com Coração de Estudante. Composta em parceria com Wagner Tiso, a música foi criada para o filme Jango, sobre a trajetória do presidente João Goulart, e serviu de hino para a campanha das Diretas Já, em 1984. Ao final da música, Bituca bradou:
— Viva a democracia!
O público no Gigantinho delirou.
O show teve como penúltima música a charmosa e melancólica Encontros e Despedidas. "O trem que chega é o mesmo trem da partida", como diz a letra. Pois a partida viria com a bela Travessia, com Milton e Ibarra dividindo os vocais. Um dos primeiros sucessos de Bituca, composta em parceria com Brant, a faixa foi defendida por ele no Festival Internacional da Canção de 1967, obtendo o segundo lugar.
Terminado o show, Milton ainda chamaria sua equipe técnica ao palco para que fossem saudados. Luzes acessas, poses para foto e, por fim, as cortinas se fecharam. Alguns fãs secavam lágrimas, outros se abraçavam. Estavam felizes, satisfeitos e contemplados, mas havia um sentimento agridoce no ar. O trem de Milton partia da estação.