Poder ouvir mestres como Ludwig van Beethoven e Wolfgang Amadeus Mozart interpretando suas grandes obras é o sonho de todo entusiasta de música clássica, mas séculos separam estes nomes dos dias de hoje. Esta viagem através do tempo, impossível para os humanos, no entanto, foi encarada por um valente fortepiano Broadwood, de 1797, que sobreviveu aos anos e cruzou o oceano para apresentar aos gaúchos o mesmo som que os artistas daquela época escutavam ao compor as suas músicas.
Intermediário entre o cravo e o piano moderno, o fortepiano e suas variações, seja de construtor ou de formato — o que está em solo rio-grandense, por exemplo, é um square piano —, foram utilizados por diversos gênios da música clássica em seus trabalhos de composição. E, por mais que a melodia não mude, uma vez que as notas estão lá, gravadas na partitura, o som é diferente. Assim, o instrumento, tal qual o cravo, é um importante portal para o passado para saber exatamente o que o artista e o público ouviam séculos atrás.
Mas, afinal, como que esse instrumento musical de 225 anos veio parar em Porto Alegre? Tudo começou na década de 1980, quando o médico Fernando de Abreu e Silva viajou para a Escócia para fazer um doutorado e acabou morando na casa de um amigo que havia adquirido o fortepiano em um leilão de itens do Castelo de Fingask, habitado por uma tradicional família europeia desde 1200. Entusiasta da música clássica, o gaúcho quis comprar a relíquia do europeu, que não aceitou vender. Após a morte do proprietário da peça, porém, o colecionador fez uma nova tentativa, desta vez, junto à família, que aceitou negociar a peça — por um valor muito menor do que ela realmente está avaliada, devido à amizade.
Foi quase um ano de burocracia para conseguir trazer o fortepiano, que foi fabricado em Londres, para a Capital. Ele veio de navio e, no processo, o médico gaúcho gastou seis vezes mais do que com o instrumento em si. Apesar da trabalheira toda, Abreu e Silva acredita que valeu a pena, uma vez que, agora, será possível ouvir composições de séculos atrás — como o Hino da Independência, de Dom Pedro I — como elas foram originalmente concebidas.
— Esse piano é uma joia. O som dele é completamente diferente. Não tem outro igual no Brasil e, talvez, não tenha dessa mesma antiguidade, dessa mesma época, na América do Sul. E esse som é muito importante de ser resgatado, para saber como é que aqueles compositores antigos ouviam o que eles estavam compondo. É um outro som — ressalta o proprietário do instrumento.
Um marco
Fernando de Abreu e Silva escolheu o maestro Fernando Cordella, referência em música antiga e de quem é padrinho de casamento, para ser o tutor do instrumento, o qual ele diz que é um "presente para a cidade". De acordo com ele, em breve, recitais com o fortepiano serão realizados, tanto em seu apartamento, no Centro Histórico, como na capela do seu sítio, em Charqueadas. E, além disso, ele também pretende emprestar a peça para centros culturais Brasil afora realizarem concertos e, assim, esse som histórico seja conhecido por todos.
Para Cordella, é um marco não apenas para a cidade, mas também para o Brasil, contar com um instrumento como este fortepiano, principalmente por ser um original de John Broadwood, considerado por ele um dos revolucionários na construção destas peças na época, as quais ele compara com carros da Ferrari - o que faz sentido, uma vez que apenas nobres tinham estes pianos. Beethoven, que tinha dois Broadwoods, por mais que ele ganhasse muito bem, não tinha condições de adquirir um. O próprio construtor presenteava os músicos com suas obras, fazendo-os, então, de garotos-propagandas — a famosa permutinha, comum entre os influencers de hoje.
— É um instrumento muito importante que, na verdade, revela muito da linguagem de interpretação desses compositores do passado, como Mozart, Beethoven, (Joseph) Haydn. Hoje em dia, no século 21, a gente busca a verdade e uma forma de buscar a verdade na música é ouvir essa música do passado, que é uma das mais importantes até os dias de hoje, com os instrumentos originais - enfatiza o maestro, completando que, nas Américas, o único lugar que ele sabe que existe um instrumento como este do qual é "guardião" é no Metropolitan Museum of Art, o MET, em Nova York.
E para quem está curioso para saber como é ouvir um fortepiano em ação, Cordella destaca que a diferença é grande para o som de um piano moderno, uma vez que a interpretação é mais rápida:
— Tem gente que diz que escutar a música de Mozart ou de Beethoven tocada em um instrumento de época, é rock'n'roll. E é tipo isso, mesmo. Depois, com esses instrumentos mais pesados, mais eruditos, mais clássicos, por conta de sua grande ressonância, deu essa cara mais elitizada que a música clássica tem. Essa música era a música popular, o pop da época — explica o maestro.
E apesar do fortepiano estar em perfeitas condições, sendo todo original, segundo o dono e o tutor, o instrumento ainda passará por alguns pequenos reparos para poder ficar totalmente operante — afinal, ele foi entregue ao mundo há mais de dois séculos. Para isso, um restaurador de São Paulo, William Takahashi, fará os ajustes necessários com peças fabricadas sob encomenda na Alemanha e na Inglaterra. A conclusão da breve reforma deverá acontecer nos próximos meses. Agora, é só uma questão de tempo para que os gaúchos possam embarcar nesta volta a um passado de gênios.
— É uma emoção ter contato com um instrumento que não é uma cópia, é um original. Sentir a sonoridade é uma viagem no tempo, mesmo — completa Cordella.