Por Everton Cardoso*
Voltar ao Theatro São Pedro dois anos depois de ter visto a última ópera lá apresentada é, sem dúvida, momento de encantamento e alegria. Tanta coisa aconteceu desde que vimos a montagem de Orfeu e Eurídice levada à cena pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), em agosto de 2019, que romper o isolamento para estar novamente na histórica sala de espetáculos de Porto Alegre é um misto de nostalgia e de esperança que as coisas devem voltar a acontecer como as conhecíamos antes da pandemia.
Para a apresentação de Operita Violoncello, ópera de câmara composta por Arthur Barbosa (a última récita será nesta quinta-feira, dia 15, às 20h), somente 190 dos 650 assentos da sala são ocupados, sempre com distanciamentos entre pares de cadeiras, justamente para que apenas pessoas que já convivem permaneçam próximas. Todos os presentes, claro, usavam máscaras.
A obra cujo libreto é de autoria de Álvaro Santi vem sendo chamada de "operita" certamente para diferenciá-la das operetas, um gênero lírico com características bastante próprias. A história gira ao redor de um inusitado triângulo amoroso entre Maria, uma musicista de carreira internacional e apaixonada pelo seu instrumento, o próprio violoncelo que tem forma humana em muitos momentos e Juan, por quem a protagonista se enamora no correr da narrativa. A história tem elementos interessantes, mas curta duração – são cerca de 50 minutos, o que deixa alguns elementos no ar.
A composição de Arthur Barbosa para um conjunto de 10 violoncelos é variada e combina referências diversas, incluindo música latina de diferentes vertentes. A mezzo-soprano Angela Diel, protagonista do espetáculo, fez boa apresentação e deu vida aos conflitos da personagem. Daniel Germano, baixo que temos visto com frequência nas montagens operísticas locais, mais uma vez fez uma apresentação de qualidade vocal. E o ator Raul Voges, no papel do violoncelo, conseguiu gerar curiosidade sobre esse que seria o articulador de toda a trama. Mas aqui surge uma pergunta, dado o caráter musical da montagem: por que a opção de que o instrumento musical fale em vez de cantar? A parte divertida ficou com o cachorro Buzz: adestrado e comportado, despertava reações da plateia sempre que se movia.
Na proposta cênica, algumas soluções resultaram bastante instigantes. Exemplo disso é o momento em que, para mostrar o começo da relação da personagem Maria com o violoncelo, o elenco de bailarinas manuseia uma maquete e uma boneca de pequenas dimensões, e essa mesma cena é filmada e projetada no fundo do palco. O caráter meio improvisado das imagens que se vê atrás dá um tom nostálgico de vídeo caseiro e complementam bem a ambiência. O figurino de Antonio Rabàdan, como já estamos habituados a ver nas montagens líricas da cidade, segue em sua proposta de transitar entre algo que já conhecemos e algo que estranhamos, desconectando temporal e geograficamente o tema da história.
É claro que muitas coisas poderiam ser diferentes tanto na concepção como na montagem – os diálogos e personagens poderiam ser mais complexos e profundos em alguns momentos, trechos explicativos poderiam ser substituídos por metáforas e cenas e mesmo falas poderiam ter sido tornadas canto. Mas nada disso diminui o brilho do espetáculo e a sua particular importância num momento como o que vivemos: representa muito ver um palco ocupado com arte e ver novamente a cena operística da cidade se movimentando.
E uma iniciativa como essa ganha ainda mais força por reunir profissionais e instituições da cidade para retomar suas atividades num momento que ainda se apresenta como difícil. Sendo isso financiado também com recursos da Lei Aldir Blanc, há mais a se celebrar, afinal de contas o campo artístico e sobretudo as artes da cena têm tido muita dificuldade de sobreviver minimamente nestes tempos de distanciamento e atividades online.
* Everton Cardoso é jornalista e crítico