Na Barra do Ribeiro, a cerca de 50 quilômetros de Porto Alegre, um grupo de aficionados por acordeom executou o projeto de uma gaita que o italiano Leonardo da Vinci (1452—1519) projetou mas não construiu. Entre as inúmeras criações do gênio renascentista, restaram rascunhos de um curioso instrumento que unia fole e teclado vertical, antecipando em mais de três séculos as características do acordeom moderno.
Da Vinci, no entanto, não deixou mais do que algumas ilustrações e parcas notas a respeito de como funcionaria seu invento sonoro. As anotações hoje estão guardadas na Biblioteca Nacional de Madri, na Espanha, e foram feitas no período entre 1503 e 1509. O instrumento não teve seguidores e não parece ter influenciado diretamente a evolução do acordeom, que só ganhou teclado vertical a partir da segunda metade do século 19.
Até pouco tempo atrás, o projeto era apenas mais uma prova do gênio criativo e inovador de seu autor, sem impactar o mundo da música. Nos últimos anos, no entanto, alguns luthiers e instrumentistas têm se dedicado a desvendar as anotações de Da Vinci. É o caso de Renato Borghetti, que conseguiu montar o instrumento ao lado do luthier Rogério Guimarães e da equipe da Fábrica de Gaiteiros. A arte que decora o objeto é de Emily Borghetti, filha do músico.
Borghetti conheceu os croquis de Leonardo da Vinci há cerca de 20 anos, em uma visita ao Museu Internacional do Acordeom, em Castelfidardo, na Itália.
— Achei curiosa a história de o Da Vinci ter projetado um acordeom, mas segui minha visita pelo museu. No ano passado, um amigo trouxe da Itália um CD e um prospecto de um show que um luthier tinha realizado com o instrumento. Com a Fábrica de Gaiteiros estruturada na Barra do Ribeiro, aceitamos o desafio de montar a gaita do Leonardo da Vinci — conta Borghetti.
Apesar do fole e do teclado vertical, o instrumento tem uma diferença fundamental em relação ao acordeom. Em vez do ar projetado pelo fole passar por palhetas de metal, como ocorre nos instrumentos modernos, a vibração das notas se dá com a passagem do ar por tubos de madeira. Cada tecla abre a passagem para um tubo diferente. O resultado é um timbre parecido com o da flauta.
O instrumento, único no Brasil e raro no mundo todo, não será montado em série pela Fábrica. A instituição criada por Borghetti fabrica gaitas-ponto desde 2014 e todos as peças são voltadas exclusivamente para o ensino de música a crianças de sete a 15 anos nas sedes do projeto.
A "gaita do Leonardo da Vinci", como ficou conhecida, na ausência de um nome próprio, também terá fins exclusivamente didáticos. Quando a Fábrica de Gaiteiros for reaberta para visitação, o instrumento será exibido em uma exposição permanente sobre a história da gaita, no segundo andar do prédio da Barra do Ribeiro.
— Grande parte dos alunos têm dificuldade em aprender a tocar gaita-ponto, principalmente no início dos estudos. A gaita do Leonardo da Vinci também foi um desafio para nós. Demoramos 14 meses para montá-la, a partir de poucas referências. É uma maneira de demonstrar aos estudantes que é possível superar dificuldades por meio da dedicação — diz Borghetti.