Sob a ditadura militar e a censura, eram escassos os lugares para os músicos locais se apresentarem na Porto Alegre de 1975, com parcos bares e teatros abertos aos artistas. Os espaços eram ainda mais raros para divulgar novos os novos nomes que surgiam na cidade. Após a primeira edição do festival Vivendo a Vida de Lee, em 13 de agosto daquele ano, uma nova ideia começou a se consolidar: havia muita diversidade e qualidade na música da cidade e havia público interessado nela. Bastava um empurrãozinho.
Tudo começou com o programa Mr. Lee in Concert. da Rádio Continental AM. A atração estreou em abril de 1975, como campanha das Lojas Renner para o lançamento no Brasil das calças Lee, fruto de uma joint venture com a empresa americana HG Lee Company. A ideia era um programa que tocasse country music, dialogando com a marca de jeans.
O caubói recrutado para comandar a atração foi Júlio Fürst (hoje apresentador da 102.3). No programa, ele encarnava o personagem Mister Lee. A atração ia ao ar das 22h às 23h, de segunda a sábado.
Nos EUA, a empresa promovia pelas rádios americanas shows batizados de Lee in Concert, com nomes como Bob Dylan, James Taylor e B.B King. Júlio decidiu emular essa ideia com músicos locais. Como as possibilidades de gravação eram poucas em Porto Alegre à época, a solução foi utilizar os estúdios da Continental na madrugada.
Contando com a ajuda de Francisco Anele, que era operador da rádio, Júlio passou a gravar as músicas que estavam na final do festival Musipuc daquele ano começou a tocá-las no programa. Mr. Lee in Concert passou a ser dividido em dois blocos: um para música estrangeira e outro para a música local.
Com o sucesso das atrações locais e o aumento pela demanda de gravação, Júlio entendeu que era hora de levar esses artistas para o palco. Sua ideia era promover um Woodstock em Porto Alegre, referência ao célebre festival americano no qual se inspirou.
– Fiz uma proposta para Lee e a Renner me apoiarem com ajuda de custo. O pessoal era muito cético pela época em que estávamos vivendo, em plena ditadura e com a censura. Eles achavam que o concerto não ia passar. Naquela época, qualquer reunião de meia dúzia de pessoas em uma esquina era dispersada – lembra Júlio.
O radialista pôs a ideia em prática e avançou com os recursos de produção. Fechou com o Teatro Presidente.
Ele selecionou grupos e artistas que tinham mais repercussão no programa. Lá estavam nomes como Hermes Aquino, Almôndegas, Fernando Ribeiro, Inconsciente Coletivo, Gilberto Travi e Cálculo 4, Ensaio, Byzarro, Utopia, Bobo da Corte e Palpos de Aranha. Havia uma diversidade sonora também entre os selecionados: MPB (ou até um embrião da MPG), pop, rock, bossa nova, folk, regional, entre outros ritmos.
Como era a sua primeira experiência de divulgação em rádio, Júlio conta que a expectativa era encher meia casa com o Vivendo a Vida de Lee. Seria um sucesso. No entanto, o festival superlotou o teatro. Ele lembra que muita gente ficou do lado de fora (calculou que havia mais mil na rua) e forçou uma invasão do teatro: romperam os cadeados de uma saída lateral e conseguiram entrar. No fim, Júlio estima que havia mais de 1,5 mil pessoas dentro do Presidente.
Segundo o comunicador, um dos fatores do sucesso da primeira apresentação foi a curiosidade somada ao ineditismo:
– As pessoas começaram a ouvir gente daqui. O cara que era vizinho dele do edifício. A pessoa que via na praça no domingo. Estavam na rádio e, então, no palco. Isso não existia na época por aqui. Só se ouvia coisas de fora.
Logo, uma edição ainda maior do festival se fez necessária. No dia 9 de novembro de 1975, quando o 2º Vivendo a Vida de Lee encheu o Auditório Araújo Vianna com 5,5 mil pessoas, em mais de nove horas de apresentações – com 17 bandas, começou às 17h do domingo e terminou às 2h30 de segunda.
Júlio recorda que havia pessoas vindas do interior que acamparam ao redor do Araújo para ver o festival. Era um público jovem (a “magrinhagem”, como se dizia na época).
Vivendo a Vida de Lee ainda teria mais duas edições em Porto Alegre, além de concertos em Pelotas, Santa Maria, Passo Fundo, Caxias do Sul e até Curitiba, onde reuniram um público de mais de seis mil pessoas (programa também era transmitido no Paraná). Em 1976, o programa e o projeto do festival foram encerrados. Mas a semente estava plantada.
Legado
Autor do livro Woodstock em Porto Alegre – que narra a trajetória do programa de Mister Lee, a trajetória das atrações e dos festivais –, o escritor e cantor Rogério Ratner descreve que os eventos e a rádio abriram uma janela enorme na música local.
– Foi uma coisa revolucionária. É um legado extremamente positivo de valorizar a cena local, de abrir espaço para artistas novos que estão surgindo. Foi um resgate de autoestima da cena musical e cultural – aponta Ratner.
O cantor e compositor Bebeto Alves, que se apresentou nos festivais com a sua banda Utopia, destaca:
– Mr. Lee deu um palco grandioso para tudo aquilo que estava acontecendo. Foi de extrema importância para o movimento musical que surgiu naquele período, aglutinando muitas coisas. Mr. Lee foi fundamentalmente uma base para o que se criou e está aí até hoje.
Kledir Ramil, que integrava o grupo Almôndegas, lembra que a rádio abriu seu estúdio para as primeiras gravações da banda, que viria a ter projeção nacional. Para o músico, o resultado dessa ousadia foi uma revolução que se traduziu em enorme sucesso.
– Júlio Fürst captou com sensibilidade esse espírito da época. Reuniu e potencializou com seu programa na rádio e os concertos ao vivo a chama de tantos talentos que começavam a surgir. Lembro com saudade da efervescência dos teatros lotados e principalmente do clima de confraternização nos bastidores. Algo novo e muito importante estava nascendo ali – atesta.
Conforme Ratner, Júlio propiciou um modelo inverso de valorização da música local:
– Na medida que você faz que o artista local seja valorizado, isso traz um efeito propagador. A gente tem essa coisa meio patológica de não valorizar o artista do Rio Grande do Sul, só se estiver tarimbado pelo centro do país. Já o Mr. Lee propôs um efeito inverso, valorizando algo daqui que teria projeção nacional.