Por onde começar a escrever sobre Navegante, o extraordinário disco que reúne a voz de Dudu Sperb e o violão de Guinga? Pensei o seguinte: embora tudo o que já tenha feito, e não foi pouco, o porto-alegrense Dudu ainda é um artista local, enquanto o carioca Guinga, mesmo sem o tal “sucesso popular”, é considerado um dos mais inovadores compositores e violonistas da história da música brasileira. O que motiva essa conjunção tão íntima, com Dudu procurando entrar na alma de Guinga e este não apenas aceitando a investida como apegando-se a ela? Navegante resulta do encontro de dois artistas sem preconceitos, despojados, que passam ao largo de posições esquemáticas e escalas de valores viciadas.
Em outras palavras: o “local” Dudu e o “nacional” Guinga são iguais perante a música. Guinga já foi cantado por meio mundo, de Elis a Maria João, de Esperanza Spalding a Mônica Salmaso, para ficarmos com as mulheres, que se sentem próximas dele - e é preciso ter voz para cantá-lo, suas músicas não se abrem a qualquer um. Dudu já visitou as obras de Noel, Caetano, Chico, Cole Porter, Elis, cantou sambas, tangos, boleros e milongas em bons shows e discos, mas nunca encarara um desafio do porte deste. A cada música do disco, o ouvinte pode sentir que ele está usando todas as forças para expressar o que a sofisticada construção harmônica de Guinga pede e as letras exigem: densidade, profundidade.
Em um texto em que comenta cada uma das 14 canções, Dudu conta que foi através de Bolero de Satã (parceria com Paulo César Pinheiro), interpretada por Elis e Cauby, em 1979, que tomou conhecimento de Guinga: “Lembro do quanto fiquei impressionado e encantado ao ouvi-la. Por esse motivo, pelo que ela teve de primordial como introdução ao universo do compositor, essa era uma canção que não poderia faltar". Entre as escolhidas por Dudu, Bolero de Satã, Catavento e Girassol (com Aldir Blanc) e Senhorinha (também com PCP) são as mais, digamos, notórias - com PCP há ainda Nonsense e a que dá título e fecha o álbum, Navegante (“A navegar por navegar/ Na escuridão do mar”).
Além do bolero, as parcerias com Aldir são Sete Estrelas, que abre os trabalhos (“Sou o cachorro na viela cobiçando a lua/ Sou o vermelho da donzela quando ela menstrua”), Canção do Lobisomem, Choro pro Zé, e Neblina e Flâmulas. Entre os outros parceiros, está uma única feita com Chico Buarque, Você, Você, mais Luís Felipe Gama em O Silêncio de Iara, Zé Miguel Wisnik em Ilusão Real, o novo Thiago Amud em Avenida Atlântica e Anna Paes/Simone Guimarães na cinematográfica Nobreza da Maré, única inédita, mais atual, direta e impactante do disco - a letra é uma imersão nos vários Rios de Janeiro, com Marielle entre as tantas citações e epílogo aguardando a entrada de um “choro enredo”...
Antes de ir adiante, vale salientar que a composição de Guinga absorve tanto o conteúdo das letras, que soam como se também fossem dele. Isso é raro. Nas parcerias de Chico/Tom, Aldir/Bosco, Milton/ Brant, por exemplo, para citar apenas esses semideuses, podemos sentir onde estão um e outro. Com Guinga, não: é uma coisa só. Seguindo, no citado texto, Dudu menciona ritmos como samba, fado, valsa; mas ritmos evidentes, marcados, é o que menos há. E não importa. Predominantemente grave, entregue ao mesmo tempo à emoção e ao rigor, a voz de Dudu se mescla ao violão totalmente orgânico de Guinga, tocado de um modo que se pode quase ver os dedos percorrendo as cordas.
Enfim: os dois tocaram junto pela primeira vez no início de 2018, no StudioClio. Lá começou a germinar este disco que, recomendo: pelo menos na primeira vez, o melhor é ouvir sozinho.