O título do disco lançado em 2014, De Normal Bastam os Outros, sintetiza o espírito da carreira de Maria Alcina, que agora chega aos 70 anos com o álbum retrospectivo In Concert, gravado ao vivo em janeiro com a SP Pops Symphonic Band.
Revelada em 1972 com Fio Maravilha (Jorge Ben) no Festival Internacional da Canção, a cantora mineira tem estado especialmente ativa nos anos 2000, com discos bem variados e um trabalho ao lado do grupo eletrônico Bojo. Desde o início, com os metais da orquestra (40 figuras) em clima apoteótico, In Concert é pura diversão. Não tem músicas de Gil nem de Caetano, mas com alegria e humor, como se fosse legítima herdeira, Maria Alcina parece levar no tempo a bandeira da Tropicália. No roteiro, 14 músicas que marcaram sua carreira.
É a primeira vez que ela se apresenta acompanhada por uma grande orquestra — a ótima SP Pops foi criada pelo maestro Ederlei Lirussi sob inspiração da lendária Boston Pops Orchestra. Performática, moleca, brincando com o público, Maria Alcina ocupa o palco com alta vitalidade e a potência de sempre na voz. Nem sempre devidamente valorizada, é uma das maravilhas da música brasileira, fazendo o seu próprio mainstream.
Entre as músicas, Eu Sou Alcina (Zeca Baleiro), Tome Polca (Zequinha de Abreu), Kid Cavaquinho (João Bosco/Aldir Blanc), Chica Chica Boom Chic (sucesso de Carmen Miranda), Folia no Matagal (Eduardo Dusek), Bacurinha (folclore), Prenda o Tadeu (Antonio Sima/Clemilda) e Fio Maravilha. Mais um golaço do produtor Thiago Marques Luiz.
Zélia Duncan: leveza em tempo pesado
“Este álbum foi idealizado num momento muito agressivo das nossas vidas, que desembocou no ano de 2019”, descreve Zélia Duncan no texto escrito para a divulgação de Tudo é Um, primeiro disco de canções autorais desde 2011. Ao contrário desse “momento agressivo”, e talvez para escapar dele, as músicas são suaves, amorosas.
Lembram aquele pop folk dos verdes anos dela — o trabalho foi feito em conjunto com o velho parceiro Christiaan Oyens e músicos da categoria de Jaques Morelenbaum, Rodrigo Suricato, Kassin, Jessé Sadoc. Excetuando uma (do inédito pernambucano Juliano Holanda), todas as músicas são de Zélia e os parceiros Zeca Baleiro, Dani Black, Moska (os três fazem participações), Chico César, Fred Martins e Dimitri BR, além de Oyens.
O disco roda leve, gentil, com letras intensas, bom de ouvir na arquitetura esmerada dos arranjos. Eu não iria citar faixas, mas escolho quatro: a bem folk Canção de Amigo, a quase-milonga Tudo é Um, a quase-valsa Olhos Perfeitos e o rock Eu Vou Seguir. As gravações foram feitas ao vivo no estúdio. Viva Zélia!
Bianca Gismonti Trio: música universal
Refinada pianista, Bianca Gismonti percorre o mundo desde os 15 anos (tem 37). Começou ao lado do pai, Egberto, seguiu com o duo GisBranco e, nos últimos tempos, com seu trio – completado pelo baixista Antonio Porto e o baterista Julio Falavigna.
A consistência universal de Desvelando Mares, terceiro álbum do trio, faz-se, portanto, quase espontânea, natural. Gravado em Budapeste, lançado primeiro na Europa e nos EUA, é música instrumental de altas esferas, com vários sotaques. Inspiradas por “vários compositores argentinos”, “matizes africanos”, compositores como o tunisiano Dhafer Youssef, o armênio Tigran Hamasyan, a japonesa Hiromi e o norte-americano Steve Reich, as caleidoscópicas composições de Bianca, com arranjos coletivos, também recebem visitas como a cantora portuguesa Maria João, a violinista indiana Preetha Narayanan e os conterrâneos do gaúcho Falavigna, Bebê Kramer (acordeom) e Fábio Mentz (flauta bansuri).
É jazz progressivo, música brasileira, world music, música clássica, étnica, profana, música como religião. Emocionante.
Antena
CANTO DA NOITE NA BOCA DO VENTO, de Fabiana Cozza
No ano passado, Fabiana Cozza, uma das maiores cantoras do Brasil, foi envolvida em preconceituosa polêmica por não ser “suficientemente negra” para viver o papel de Dona Ivone Lara (1922-2018) em um musical. Recusou o convite, mas não a identificação com a grande dama do samba, a quem dedica seu sétimo disco, Canto da Noite na Boca do Vento. Com perfeita instrumentação concisa liderada por Alessandro Penezzi (violão 7 cordas), Fabiana traz a obra de Dona Ivone para sua própria expressão — fica quase como samba de câmara. São 13 músicas, entre elas Enredo do Meu Samba, Alguém me Avisou, Adeus Timidez, Liberdade e Bodas de Ouro. A pedido de Fabiana, Hermínio Bello de Carvalho, parceiro de Dona Ivone, compôs a inédita A Dama Dourada. Participações especiais: Maria Bethânia, Péricles e Nailor Proveta.
ATRACA GERALDO PEREIRA, de Anaí Rosa
A obra de Geraldo Pereira (1918-1955) já foi muito interpretada. De formação erudita mas especialista em cantar samba (há anos é uma das atrações do bar Ó do Borogodó), a paulista Anaí Rosa resolveu surpreender neste novo álbum. Com arranjos de Cacá Machado e Gilberto Monte, Atraca poderá, digamos, horrorizar os fãs tradicionais do compositor mineiro/carioca: os sambas são em boa parte desconstruídos, violões, cavaquinho e tamborim dão lugar a sintetizadores, guitarras ásperas (Leonardo Mendes) e bateria forte. No meio disso, a voz educada de Anaí (em três arranjos com o apoio da voz grave de Nelson Sargento) transporta o humor de Geraldo para outra dimensão em sambas como Falsa Baiana, Chegou a Bonitona, Polícia no Morro, Escurinho, Ministério da Economia e Acertei no Milhar.
O AMOR É BOSSA NOVA, de Hanna
O Volume 2, duplo, da série em homenagem a João Gilberto feita pela cantora alagoana radicada no Rio de Janeiro reúne 23 canções do repertório do ícone bossa-novista. Hanna está muito familiarizada com elas, pois ao longo dos últimos 20 anos as tem cantado em clubes de jazz da França, Itália, Suíça, Grécia — por seu trabalho de promoção da música brasileira, ganhou em março passado o título de Embaixadora do Turismo do Rio de Janeiro. Ela grava pouco, este é o quarto álbum, com arranjos, piano e teclado de Dodô Moraes e um time grande de músicos. Com sua bela voz rouquinha, ela visita Eu Vim da Bahia, Bim Bom, Falsa Baiana, O Samba da Minha Terra, Corcovado, Triste, Águas de Março, Insensatez, Da Cor do Pecado, Retrato em Branco e Preto...