Em uma de suas viagens a Nova Orleans, cidade do sul dos Estados Unidos considerada o berço do blues e do jazz, o músico Luciano Leães navegou pelo Rio Mississippi a bordo de um barco a vapor, embarcação turística remanescente do século 19. Convidado a se apresentar em um festival de música, o gaúcho conhecido nos bares de Porto Alegre ficou encantado com a banda que embalava o passeio pelas águas do rio homenageado em canções. Sonhou um dia poder tocar seu teclado daquele jeito, diante de um público que ouvisse seu instrumento enquanto perdia os olhos no horizonte de um rio.
Não imaginou que a experiência seria na mesma cidade onde nasceu. E não exatamente em um rio, mas em um lago. Por volta das 20h do dia 21 de junho, Leães embarcou no Cisne Branco, barco que navega pelas águas do Guaíba desde 1978, para uma viagem diferente das que a embarcação costumava oferecer até seu naufrágio, em janeiro de 2016, quando emborcou, sem passageiros dentro, devido ao temporal que assolou Porto Alegre.
Ao lado da cantora Luana Pacheco, namorada e companheira de palco, Leães foi uma das atrações da Fête de la Musique, festival com atrações espalhadas por diferentes espaços da Capital. O show da dupla no Cisne Branco atraiu cerca de 40 pessoas, número bem abaixo da capacidade da embarcação, de 300. Parte delas não sabia que o barco, reformado após afundar no Guaíba, tornou-se um palco a mais para os músicos da Capital.
Clima de comunidade
Se a baixa presença de público e o ambiente intimista do barco causaram algum estranhamento, o repertório da noite, que pulava do blues para o jazz, tratou de descontrair os semblantes. Sentados nos estofados colados às paredes do primeiro deque do barco, um ambiente com clima de bar garantido pela luz verde, os clientes tomavam drinques e batiam palmas incentivados pelos músicos. Ao ouvir os primeiros acordes de Georgia on My Mind, do repertório de Ray Charles, um dos espectadores bebeu um gole de vinho e fechou os olhos, comovido pela música.
Sem que fosse possível sentir o balanço do barco, o Guaíba, do lado de fora, parecia distante. Naquele piso, só podia ser contemplado se o cliente erguesse o pescoço até as janelas ovais acima dos estofados.
— Acho bom o Luciano tocar um som animado pra esse barco não afundar de tristeza – brincou Luana ao terminar de cantar Ne Me Quitte Pas, canção de Jacques Brel eternizada por Edith Piaf.
O show daquela noite não era o primeiro da dupla de músicos no Cisne Branco. Vencedora do Festival da Canção Francesa em 2010, Luana Pacheco havia se apresentado pouco antes, no dia 2, ao lado de um grupo de mulheres reconhecidas no Estado: a flautista Ana Carolina Bueno, do duo Mulheres em Harpa e Flauta, e as cantoras Danny Calixto, eleita a melhor intérprete de MPB no Prêmio Açorianos de 2017, e Laura Dalmás, participante do The Voice Brasil em 2016. Leães já havia vivido a oportunidade com a qual sonhou navegando pelo Mississippi quando se apresentou, em abril, com as bandas Ale Ravanello Blues Combo e Beck & Bando Alabama, projeto paralelo de Fabricio Beck, vocalista da Vera Loca. Embalada por blues, a festa no terceiro deque do barco, com vista aberta para o Guaíba, seguiu até as cinco da manhã.
Acostumado com os bares de Porto Alegre, o pianista reconhecido duas vezes no Açorianos observa um ponto curioso em tocar no Cisne Branco. Algo que, talvez, seja o ideal de todo músico: o público só pode abandonar o show quando o barco retornar:
— Acaba rolando um clima legal de comunidade. Todos dentro do barco, até ele atracar de novo. Fica todo mundo junto, como uma família a fim de aproveitar a noite.
Enquanto o público se divertia com o repertório de clássicos, Adriane Hilbig, proprietária do Cisne Branco, subia e descia os deques do barco com ar de gerência, sem deixar de lado a simpatia. Testemunhava a satisfação dos clientes em desfrutar de um show dentro de um dos pontos turísticos mais tradicionais da Capital.
Estrutura ficou comprometida
Quando o barco foi atingido e virou de lado, em 2016, privando os turistas dos passeios durante oito meses, Adriane, herdeira da embarcação, sentiu que precisava dar um rumo diferente ao projeto concebido pelo pai em 1976. Fundador de uma agência de turismo, Alfonso Pedro Hilbig viu na adoração dos porto-alegrenses pelo Guaíba uma oportunidade de empreender: construiu um barco que proporcionou uma visão diferente da cidade, a partir das águas do único lago a banhar a Capital dos gaúchos. Nos meses em que o Cisne Branco passou por reformas, com a estrutura comprometida pela primeira vez em 38 anos, o receio da empresária era de que o projeto de sua família afundasse de vez.
— O barco naufragou. Estava na iminência de não voltar — recorda.
Com todos os olhos voltados para a situação dramática de um ícone que já pertencia a Porto Alegre, Adriane retomou o leme da situação e apostou alto: aplicou cerca de R$ 2 milhões para colocar o Cisne Branco no prumo novamente, flutuando sobre o Guaíba. Decidiu, porém, que o projeto concebido pelo pai não se limitaria aos passeios turísticos: também daria uma contribuição para ajudar a renovar o epíteto que Porto Alegre recebeu, no passado, de capital cultural do país.
Embarcação tem três ambientes
Adriane passou a convidar músicos para tocar a bordo do barco. As apresentações iniciaram no final de 2016, aos sábados e domingos, aproveitando o fim do dia para que os turistas pudessem admirar o pôr do sol durante a vigência do horário de verão. Neste ano, a programação ficou mais consistente: os shows extrapolaram os meses de calor e seguiram outono e inverno adentro, não somente no fim da tarde, mas também à noite.
Os shows abrangem diferentes estilos musicais. Músicos celebrados como Nei Lisboa e Os Fagundes arregimentaram fãs até o barco, que também deu espaço ao samba das cantoras Anaadi e Nani Medeiros. Até a performance político-poética de Paola Kirst, símbolo de uma nova cena musical em Porto Alegre, ocorreu a bordo da tradicional embarcação.
Com acústica adaptada para shows, o Cisne Branco oferece possibilidades de palco em cada um dos três andares: um no deque superior, com visão aberta e privilegiada do Guaíba; um no segundo andar, onde funciona o restaurante cujas luminárias dão um tom romântico à apresentação; e outro no terceiro andar, chamado de danceteria, onde a luz esverdeada garante um clima de bar. Foi ali que Luciano Leães e Luana Pacheco fizeram o show. Quem queria pegar o vento do Guaíba e admirar as luzes da cidade podia subir até o deque superior, onde caixas de som garantiam que as vozes e os instrumentos dos músicos chegassem até ali.
— O pessoal fica tão fascinado que não quer ir embora. Vivem uma fantasia, dizem que nem parece Porto Alegre — diz a atendente Ivone Rosa, há 12 anos trabalhando no Cisne Branco e testemunhando os clientes imitarem Rose e Jack, do filme Titanic, na proa da embarcação.
Para Adriane, o barco faz com que os shows sejam especiais.
— Não é só mais um lugar onde se faz uma apresentação. É uma coisa mágica. A gente tira a pessoa de dentro da cidade e a traz para o Guaíba, para olhar para a cidade novamente — diz, mostrando que manteve em sua bússola o roteiro antigamente traçado pelo pai.
Quando se completavam quase duas horas de apresentação, duas jovens pularam do estofado, deram-se as mãos e começaram a dançar Whole Lotta Shakin’ Goin’ On, de Jerry Lee Lewis. Empolgado com o coro da plateia, Luciano começou a tocar Great Balls of Fire e, abandonando qualquer formalidade que ainda restava, colocou o pé no teclado, deslizando-o pelas teclas. Com o barco se aproximando do atracadouro do Guaíba, despediu-se do público:
— Foi um prazer fazer um som para vocês. Som em movimento.
Próximas atrações
Sábado (14)
Luana Fernandes
Show de soul e MPB. Ingressos a R$ 40 antecipados no stand de informações localizado no 3° andar do Shopping João Pessoa e na bilheteria do Cais do Porto (Armazém B3 - Av. Mauá, 1.050). Saída às 16h30 do Cais do Porto.
Jazz de Cinema
Trilhas de filmes clássicos. Ingressos solidários, mediante entrega de dois quilos de alimento não perecível ou dois produtos de limpeza, a R$ 40 (1º lote disponível no stand de informações localizado no 3° andar do Shopping João Pessoa), R$ 50 (2º lote disponível na bilheteria do Cais do Porto) e R$ 60 (3º lote, disponível na hora do evento, se ainda sobrarem ingressos). Saída às 20h do atracadouro do Guaíba (atrás da Usina do Gasômetro).
Domingo (15)
50 Tons de Pretas
Show de samba e MPB. Saiba mais sobre o grupo aqui. Ingressos a R$ 40 antecipados no stand de informações localizado no 3° andar do Shopping João Pessoa e na bilheteria do Cais do Porto (Armazém B3 - Av. Mauá, 1.050). Saída às 16h30 do Cais do Porto.