Esqueça Anitta, Pabllo Vittar, Despacito. Fora das bolhas virtuais, a música que reina absoluta nas paradas brasileiras é a sertaneja. Os números reafirmam, ano a ano, que esse gênero é o preferido no país – de longe. Mas como esse cenário se constituiu? De onde surgiu, o que o conformou? GaúchaZH publica, a seguir, um estudo que esboça aquilo que, pretendem seus autores, vai virar um livro sobre a trajetória de ascensão de um ritmo que nasceu como a expressão da identidade cultural caipira, desenvolveu-se a partir de marcos da indústria do disco e, hoje, pasteurizada e misturada a elementos diversos, após muitos embates entre suas correntes, domina todos os rankings das músicas mais ouvidas. Leia abaixo a primeira parte do texto, aqui a segunda e, aqui, a terceira e última.
Por Henrique Mann e Leandra Vargas
Músico e historiógrafo, autor de "Som do Sul" (2002), entre outros;
Professora e pesquisadora licenciada em História pela UFRGS.
Para quem vive nos grandes centros urbanos, a atual hegemonia da chamada música sertaneja causa espanto. É bem provável que os precursores do gênero também ficassem boquiabertos com o gigantismo dos números, o predomínio e, principalmente, a forma que essa música tem neste século 21.
O que abriga-se sob o manto genérico de música sertaneja é, hoje, muito maior do que este nome é capaz de exprimir e engloba todo o processo civilizatório do Brasil, desde os primórdios, passando pela aproximação com a música mexicana, paraguaia e country no século 20, chegando a essa miscelânea que se vê atualmente.
Sua raiz primária está na palavra caipira, mas não se resume a isto. Essa provavelmente resulta da contração das palavras tupis caá ("mato") e pir ("cortador"), significando "cortador de mato". Embora a palavra só vá aparecer na literatura e na academia no século 20, a expressão remonta ao início da colonização do Brasil. Naquele período, o padre José de Anchieta e outros jesuítas, ainda no século 16, teriam se valido da dança ritual indígena caateretê, na tentativa de conversão destes ao cristianismo. Já com o nome de cateretê, o gênero se difundiu pelas áreas interiores do Brasil Colônia produzindo o surgimento de diversos trovadores e de um gênero dançante chamado catira. Tanto o cateretê quanto o catira são hoje muito fortes e presentes nas regiões Sudeste e Centro-Oeste até a fronteira do Brasil com Paraguai e Argentina.
Ao mesmo tempo em que incorporaram elementos ibéricos, beberam da musicalidade dos índios guaicurus, xavantes, guaranis e bororo, e suas danças e músicas como urucapés, guaús, parinaterans e tocandiras. A isso acrescentou-se a parte ibérica: a cantiga do século 18 (do latim canticula, "canção pequena"); a viola portuguesa de 10 cordas (que em Portugal chamam de guitarra açoriana); as músicas de Terno de Reis (da tradição católica portuguesa) e seu coro de vozes no qual predominam a primeira e a terça (que agora chamam de "segunda voz"); as festividades católicas correlatas como Festa do Divino, Festa de São João, Festa de São Pedro; as danças e músicas do fandango, de origem espanhola. Acrescentamos a essa alquimia a parte africana das congadas e dos batuques, sem esquecer que o próprio Castro Alves, um poeta essencialmente urbano, escreveu, por volta 1860, o poema Crepúsculo Sertanejo. Assim podemos vislumbrar o caudal que nos trará até o início do século 20 e a uma fase decisiva dessa construção que perpassa a História do Brasil.
Ali, nos estertores do século 19 e no raiar do 20, veremos Catulo da Paixão Cearense cantar Luar do Sertão. Mas Catulo era um homem da cidade grande, assim como Castro Alves. Tratava-se do olhar desses homens das urbes para o sertanejo – mas o sertanejo estava lá, vestido de caipira e sem a mesma possibilidade de ver o homem da cidade. Ainda não existia rádio e, lá onde vivia o caipira, não chegavam essas informações. Aqui, é preciso dizer que até o século 18 a palavra "sertão" aplicava-se a toda a região interior do Brasil em relação às grandes cidades litorâneas como Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Depois, com a consolidação de São Paulo e Minas Gerais, o sertão do Nordeste se diferenciou do sertão do Centro-Oeste e do Sudeste, cada qual com sua cultura específica.
Para esse sertão entre o Centro-Oeste e o Sudeste, foi fundamental a ação de Cornélio Pires. Jornalista, escritor e folclorista que garimpou, pesquisou e recolheu material nas primeiras décadas do século 20 e protagonizou, em 1928, uma história épica que culminou com o lançamento da inimaginável tiragem de 25 mil discos que se esgotaram em sua primeira viagem de São Paulo até Bauru. Ele havia pago do próprio bolso essa tiragem colossal para a época (e respeitável até os dias atuais) porque a gravadora Columbia, então dirigida no Brasil pelo americano Wallace Downey, recusara lançar o que considerava "um absurdo". Logo a gravadora percebeu o filão e acordou com Cornélio a produção e distribuição de uma série que entrou para a história. Foram 47 discos com selo especial vermelho (o da gravadora era azul) e numeração em série diferenciada (na época a Columbia estava na série 5.000, os discos de Cornélio foram numerados de 20.001 até 20.047). São considerados joias raras e pedra fundamental de uma parcela significativa da fonografia nacional.
Em seus discos, Cornélio registrou as duas faces principais do gênero até então: a parte humorística, que era executada exclusivamente por artistas do interior, e a parte musical propriamente dita, da qual ele mesmo participava como intérprete, registrando músicos amadores e profissionais como Mariano e Caçula, Paraguassu, Raul Torres (Bico Doce), Sebastião Arruda, Arlindo Santana, Zé Messias e Luizinho, além de revelar ao mundo uma preciosidade instrumental até então viva unicamente em sua região original: a moda de viola.
A partir de Cornélio Pires, as coisas começaram a mudar para a música do sertão. Mas houve, naqueles dias, outro fator que alterou radicalmente todo o cenário musical: o surgimento do rádio. Sendo as emissoras localizadas nos centros urbanos, esses artistas "caipiras" tiveram de conviver evidentemente com os da cidade. Havia o estereótipo criado por intelectuais como Monteiro Lobato, com seu personagem Jeca Tatu, chegando até Câmara Cascudo, que sobre o caipira escreveu, em concordância com Valdomiro Silveira: "Homem ou mulher que não mora na povoação, não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público".
Talvez por isso mesmo os personagens caipiras do rádio fossem todos caricatos e cômicos. Mas os caipiras iam lá e tocavam para valer, a maioria em duplas como Zico Dias e Ferrinho, Lourenço e Olegário, Lázaro e Machado, Arlindo Santana e Joaquim... e uma dupla inusitada chamada Rosalinda e Florisbela, que eram nada mais e nada menos do que Hebe Camargo e sua irmã Estela em princípio de carreira. Isso se explica pelo fato de que havia muitos "imitadores de sertanejos" entre as hostes artísticas urbanas. Conviviam nos mesmos estúdios e programas os "caipiras" e Adoniran Barbosa, Hebe Camargo ou Ary Barroso (não é à toa que Ary compôs No Rancho Fundo nessa época). Mas a figura do "caipira" tinha sempre um viés satírico. Eram tratados pelos "urbanos" como se faz em Festa de São João até hoje: o pessoal da cidade pinta um bigode nas crianças e as veste de Nhô Juca, Nhô Jeca e Mariquinha.
Desde os anos 1950, havia tentativas de dissociação dessa imagem caricata por alguns integrantes daquela seara. O casal Cascatinha e Inhana rejeitava o título caipira e introduzia a guarânia paraguaia em seu repertório, mas também Tonico e Tinoco preferiam ser chamados de sertanejos.
Essa situação perdurou até meados da década de 1960, quando, ainda que pareça imponderável, a Jovem Guarda influenciou e deu outro rumo a esse cenário. Alguns artistas integrados a esse movimento tinham comunicação direta com as periferias urbanas, compostas por gente oriunda das "regiões caipiras". É o caso, por exemplo, de Odair José, Jane e Herondy, Reginaldo Rossi e até mesmo Nelson Ned. Formavam um setor secundário da Jovem Guarda, que acabou incluindo artistas alheios ao movimento, como Lindomar Castilhos e Agnaldo Timóteo, que ficaram por muito tempo sendo chamados de românticos, mas também, pejorativamente pelo público da MPB, de "bregas". O público destes também cultuava duplas sertanejas como Alvarenga e Ranchinho e Tonico e Tinoco, e isso fez com que rádios populares mesclassem esses artistas em sua programação.
Mas o que marcará definitivamente a divisão entre a música caipira e a sertaneja será a ação da dupla Léo Canhoto e Robertinho, formada em 1969. Fãs de Elvis Presley, da Jovem Guarda e de filmes de faroeste, introduziram o rock, country, uma postura de cowboys e um instrumental muito diferente das duplas de violão e viola. Usavam guitarra, baixo e bateria. Ganharam disco de ouro com seu primeiro LP.
Era a primeira vez que um artista do gênero ganhava um disco de ouro. Léo Canhoto e Robertinho estarreceram o mundo da música provocando uma cisão com os caipiras e iniciando também uma refrega com a MPB que perdurou por décadas.
E isso não era apenas por sua música ou porque apareciam nas capas de seus discos vestidos de cowboys e de armas em punho (ou até em meio a tiroteios). Havia um forte componente político nisso, pois eram abertamente apoiadores da ditadura militar. Escreveram inúmeras músicas em apoio ao regime e até em homenagem aos generais Médici e Geisel. Também não faltaram canções em homenagem à repressão e às Forças Armadas, e nisto não estavam sozinhos: Tião Carreiro também exaltava a violência policial, e o cantor de boleros Waldick Soriano declarava-se apoiador do Esquadrão da Morte. Mas Léo Canhoto e Robertinho foram muito mais eficientes em suas canções apologéticas, tanto que, em 1976, o general Geisel chamou-os ao Palácio do Planalto para cumprimentos públicos pela canção O Presidente e o Lavrador, e eles se tornaram a única dupla sertaneja agraciada com o Brasão da República.
No auge da fama, Léo Canhoto reclamaria: "Sou rico e famoso, mas a imprensa faz questão de me ignorar". É interessante observar que essa opção pela dupla que misturava rock e faroeste vinha para ocupar espaços abertos pela Jovem Guarda. Com isso, excluíam-se outros segmentos importantes, como a dupla sul-catarinense Los Viñales, que, em 1960, apostava na música andina e caribenha, emplacando o sucesso Carnavalito (El Humahuaqueño), em prosseguimento à proposta estética de Cascatinha e Inhana. Ao final daquela década, a indústria fonográfica descartou essas experiências mais sofisticadas e ligadas à cultura sul-americana ou à tradição seresteira do Brasil, partindo para a massificação através do rock, da música mexicana e dos filmes de faroeste.
Em 1970, formou-se outra dupla definidora do "novo gênero sertanejo". Milionário e José Rico (ainda não usavam "&") seguiram o mesmo caminho do faroeste, com a diferença de que sua base musical não era tanto o rock americano; eram mais da música mexicana dos mariachi, alguma coisa da guarânia paraguaia e a admiração pelos filmes italianos de bang bang (spaghetti western). Usavam a mesma estética violenta do faroeste, mas com um tempero mais humorado e romântico. Logo passaram a vender uma média de 400 mil discos por ano, ultrapassando Léo Canhoto e Robertinho em popularidade, mas formando com eles a base de toda a moderna música sertaneja. Entre seus seguidores mais ardorosos e imediatos, estavam Chitãozinho & Xororó, que, inspirados no estilo das duas duplas posavam, ainda adolescentes, vestidos de cowboys e de armas em punho.
Em 1980, surpreendentemente, Nelson Pereira dos Santos, um cineasta oriundo do Cinema Novo, dirigiu o filme Na Estrada da Vida, contando a trajetória de Milionário e José Rico da pobreza e do anonimato à fama e à riqueza. Esse filme influenciou a carreira de muitos músicos sertanejos, mas, para espanto geral, tornou-se o maior sucesso... na China! A dupla e sua comitiva de 18 pessoas foram convidadas pelo partido comunista chinês para uma longa turnê naquele país e são até hoje os artistas sul-americanos mais conhecidos por lá, verdadeiros ídolos populares.
Em 1982, Chitãozinho & Xororó romperiam pela primeira vez a barreira de 1 milhão de discos vendidos com a música Fio de Cabelo (de Darci Rossi e Marciano), consolidando o novo gênero como um negócio multimilionário e ponteando uma nova geração de duplas sertanejas, já não mais caipiras. Essa cisão fica bem clara em uma cena do filme Na Estrada da Vida, em que Milionário e José Rico são chamados de caipiras em um bar e partem para a briga.
Para esse segmento, a palavra caipira tornara-se uma grave ofensa.