Rei absoluto das paradas musicais no Brasil, o sertanejo surgiu como a expressão genuína da cultura caipira, mas se transformou ao longo das décadas. Leia a seguir a segunda parte do texto sobre o histórico do gênero preferido dos brasileiros. Clicando aqui você acessa a primeira parte e, aqui, o terceiro e último trecho do artigo.
Por Henrique Mann e Leandra Vargas
Músico e historiógrafo, autor de "Som do Sul" (2002), entre outros;
Professora e pesquisadora licenciada em História pela UFRGS.
O célebre violeiro Almir Sater, indagado pela reportagem do Globo Rural sobre qual artista sertanejo atual ele acompanhava, respondeu:
– Nenhum.
É uma resposta lacônica, mas eloquente e repleta de significados. Uma plêiade de artistas se havia alinhado em resistência aos herdeiros de Leo Canhoto e Robertinho e Milionário e José Rico nos anos 1980.
Talvez aqui caiba salientar que, se o cinema foi tão influente para os modernos sertanejos com suas versões nacionais do faroeste, também foi para aqueles que cultuavam o caipira tradicional. A partir de 1952, com uma extensa série de filmes, Mazzaropi conseguiu desconstruir a imagem negativa do matuto Jeca Tatu, convertendo o estereótipo em personagens que misturavam a ingenuidade com a sabedoria do caipira, uma esperteza ladina misturada com valores éticos e morais do homem do campo. Foi um fator importante para a autoestima do interiorano em todo o Brasil e impulsionador da indústria cinematográfica de norte a sul.
O caipira original encontrou poderosos cultuadores em artistas como Inezita Barroso e Rolando Boldrin, altamente conservadores da tradição e emuladores de programas de rádio e televisão que estabeleceram parâmetros definidores do gênero e suas delimitações estéticas. Nos anos 1980, um conflito, ora velado, ora aberto, se estabeleceu naquele front. O programa Som Brasil, de Boldrin, que estreou na TV Globo em agosto de 1981, conseguiu catalisar a música caipira, as regionais de todo o Brasil e a MPB. O programa atingiu tamanha audiência que o crítico Tárik de Souza escreveu admirado que mais de meio milhão de cariocas preferiam ficar em frente à TV nos domingos pela manhã a ir à praia.
E o Brasil inteiro acompanhava o fenômeno. Por ali desfilavam Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Chico Buarque, Gilberto Gil, Sivuca, Jair Rodrigues, Elba Ramalho, Nara Leão, Fafá de Belém,Toquinho, Egberto Gismonti e Patativa do Assaré. E também Elomar, Almir Sater e Renato Teixeira, Quarteto em Cy e Mineiro & Manduzinho. Mas os sertanejos modernos não, o que levaria Xororó a declarar, em 1988:
– Fomos até cortados de certos programas, por alguns radialistas conservadores, principalmente o Rolando Boldrin, que é um conservador da música de raiz.
E não era só com os ditos sertanejos modernos que Boldrin jogava duro. Sérgio Reis, que havia deixado a Jovem Guarda para tornar-se um ícone da música caipira de raiz ao gravar a toada Menino da Porteira, foi também barrado no programa por recusar-se a gravar sem o chapéu texano e a jaqueta com franjas, conforme apurou Gustavo Alonso em sua tese de doutorado defendida em 2011 na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Boldrin não deixava dúvidas. Suas declarações sobre o assunto são cabais. Em sua autobiografia (de 2005), escreveu: "Música sertaneja não existe, foi inventada. Como o termo caipira tinha um significado pejorativo para muitos, então criou-se um novo termo. A música caipira é a música do caboclo, purinha, sem influência nenhuma. Essa música sertaneja de alto consumo eu não considero música brasileira porque é produto de importação. As duplas usam o rótulo sertanejo porque é muito popular: tiraram a denominação caipira, talvez também por causa daquele retrato do Jeca Tatu, aquela imagem de que caipira é analfabeto. Então, rotularam e vendem esse produto como sertanejo, como se fosse uma coisa regionalista, lá da roça, e isso é mentira. É música superinfluenciada, de vários países, e rotularam de sertanejo para vender discos e ficarem ricos. Autêntico mesmo só o João Pacífico, fazia música com temas puros".
E eram mesmo tempos conturbados aqueles. Boldrin encontraria pelo caminho artistas com convicções ainda mais radicais do que as dele próprio. O gaúcho Noel Guarany, por exemplo, recusou-se a participar do programa porque era "da Globo". Essas celeumas estendem-se até os dias atuais. Em junho de 2017, Chambinho do Acordeon (que interpretou Luiz Gonzaga no cinema), desencadeou a campanha Devolva Meu São João. O movimento teve rápida adesão de outros músicos nordestinos, como Alcymar Monteiro, Targino Gondim e Joaquina Gonzaga (sobrinha de Gonzagão), contrários à contratação massiva de “sertanejos modernos” pelas prefeituras de cidades do Nordeste nas festas juninas. Entre slogans como São João Não É Festa de Peão ou São João Só É Grande com Forró, até Elba Ramalho entrou no conflito.
– Falei com a Paraíba, reivindiquei, porque o São João de lá está comprometido – disse a cantora em meio aos festejos de São João de 2017. – Não tenho nada contra nenhum sertanejo. Tem espaço para tudo. Porém, não toco na Festa de Barretos, e Dominguinhos também não cantava. A festa é deles, é dos sertanejos, e eles têm bem essa coisa: essa área é nossa.
O tom da querela subiu mais ainda quando a cantora Marília Mendonça respondeu de cima do palco em Recife:
– Vai ter sertanejo, sim! Porque quem escolhe é o público!
Isso enfureceu Alcymar Monteiro, que retrucou, já em clima de guerra:
– Essa senhora não tem autoridade para falar. Como é que ela vem falar que aqui é lugar de sertanejo? Isso é um breganejo horroroso para cachaceiro, para quem não tem identidade. Quem está falando é Alcymar Monteiro: Dona Marília Mendonça, você é lá de Goiás; vá cantar lá no seu Goiás. Não vem encher o saco da gente aqui, não, entendeu? (...) Sua música é horrorosa! Você não está com nada. Você canta para cachaceiro. Eu canto para a família, para as crianças, para os velhos, eu sou descendente de Luiz Gonzaga. Não fale mal de Elba Ramalho, que você não tem autoridade para isso.
Essas animosidades nunca foram novidade na música brasileira. Mas já foram menos deselegantes. Na defesa da música caipira, e em contraposição ao sertanejo moderno, Renato Teixeira declarou:
– Não há dúvidas de que o momento do sertanejo agora está sendo dominado por uma onda comercial, mais pop, que é o que chamam de sertanejo universitário. Acredito que esse fenômeno seja mais social do que musical e artístico, tem que ouvir bem o que essas canções têm a dizer, prestar atenção. Embora eu não ache que exista música ruim, a gente não se identifica com essas canções que estão na moda agora. A música caipira, o sertanejo de raiz não precisa acompanhar os novos tempos, porque é a música que vem da alma, não é à toa que todo mundo canta junto Romaria ou Tocando em Frente.
Seu parceiro Sergio Reis, em tom semelhante, interveio de maneira mais reticente e até conciliadora:
– O que toca hoje em dia e chamam de sertanejo universitário eu não acho que seja realmente sertanejo, não tem nada a ver com as referências que montaram a música caipira em seus primórdios, mas tenho muito respeito por todos os artistas, muitos deles cresceram escutando Sergio Reis, Almir Sater e Renato Teixeira.
Há quem destoe de tudo isso, como Roberto Correa, doutor em Musicologia pela USP:
– Sou um caipira contemporâneo. Minha música é caipira. E, para quebrar conceitos já estabelecidos, adoto termos como "música caipira contemporânea" ou "música erudita caipira".
Ao mesmo tempo, Correa vê o próprio Leo Canhoto como um modernizador, que trouxe a linguagem caipira à cidade, trocando "o cavalo pela moto". Indaga ele:
– Por que o caipira não pode se modernizar?
Seja como for, em 1986, Chitãozinho & Xororó tiveram seu próprio programa no SBT, e ali selecionaram os artistas que acharam compatíveis com suas ideias, como Leandro & Leonardo e Alan & Aladim.
Naquela época, declararam:
– Não adianta a gente cantar a música sertaneja pensando naquele público que não existe mais, do lampião a querosene. A gente adora falar do laço, da poeira, isso é muito bonito, mas nas fazendas já tem micro-ondas e parabólica.
Em 1988, responderam assim à jornalista Leda Nagle, que perguntara se seu estilo seria um novo sertanejo:
– Nós diríamos que sim, pois a música sertaneja de uns cinco anos para cá assumiu uma nova posição dentro do mercado. Ela está mais moderna, mais bem arranjada. Ela está uma música mais produzida. Isso fez com que a juventude viesse a curtir. Nossos shows são frequentados por 70% de jovens.
Na mesma entrevista, admitiram ser bregas, porque "é legal ser assim, o Brasil é assim, nós nascemos assim, para que negar?".
Não parece ser o que pensam os sofisticados Almir Sater e Renato Teixeira, nem o incensado Rolando Boldrin que, em 2016, do alto de seus 80 anos, lançando seu mais recente CD, Lambendo a Colher, declarou com a mesma convicção de sempre:
– Essa enxurrada de sertanejos acabou com a música caipira.