O sertanejo contemporâneo é resultado de uma mistura que tem origem em séculos passados, quando se iniciaram as representações da cultura caipira no país, mas marcada profundamente pela pausteurização e pelas referências diversas incorporadas nas últimas décadas, que formataram o gênero que reina absoluto nas paradas do Brasil. Leia a seguir a terceira e última parte de um artigo que mapeia essa história e que, pretendem seus autores, se transformará em um livro sobre o assunto. Clique aqui para conferir a primeira parte e, aqui, para ler a segunda.
Por Henrique Mann e Leandra Vargas
Músico e historiógrafo, autor de "Som do Sul" (2002), entre outros;
Professora e pesquisadora licenciada em História pela UFRGS.
– Eu vejo a música sertaneja hoje mal interpretada e sem identidade. Apesar de ser uma música com uma história linda, que as pessoas deveriam tentar conhecer, hoje, pelo capitalismo, pelo dinheiro, ela está perdendo um pouco dessa identidade. Para o gênero sertanejo, é um momento de prostituição absoluta.
Foi o que disse, em 2013, o cantor Leo. Seu irmão Victor, parceiro de dupla, acrescentou, no mesmo tom:
– As duplas atuais cantam muito lixo.
Costuma-se dar, como marco inicial à fase contemporânea da música sertaneja, o chamado sertanejo universitário, e credita-se o surgimento deste à dupla João Bosco & Vinícius, estudantes universitários (de odontologia e fisioterapia, respectivamente) sul-mato-grossenses que tocavam nas baladas misturando ritmos do arrocha e do axé. Mas a realidade não é tão simples. Esses rapazes apenas deram uma representatividade concreta ao que ocorria em grandes cidades do Sudeste e do Centro-Oeste naquela época.
No início dos anos 1990, começou a chamar atenção a grande quantidade de gente jovem vestida de cowboys nas baladas. Os estudantes de origem interiorana, como tropeiros urbanos, formavam comitivas para promover e frequentar as festas, fossem elas em bares ou centros acadêmicos. Alguns desses grupos tinham nomes criativos como Os Bartira (O que Nós Ganha Os Bar Tira), Os Car Boy, The Poker Face (Os Caras de Pau) e Os Pangaré, entre outros. Os rebolantes axés e seus tchans e boquinhas da garrafa iam perdendo espaço para os "quero tchus e quero tchas" da nova onda.
Na medida em que esta ia tomando conta, o próprio meio musical sertanejo reagia com desconforto. Zezé di Camargo afirmou a um blog:
– A música sertaneja piorou de uns cinco anos para cá. O espaço para a gente está melhor, porque hoje rola sertanejo até em balada, né? No nosso tempo não era assim. Mas não entendo isso, a música ficou ruim e conquistou muito público.
Aqui até se poderia parafrasear Nei Lisboa: "Cada povo tem o novo que merece". Seria mais simples, mas é preciso aprofundar mais a questão.
Vejamos: alguns estudos não rigorosamente científicos apontaram para uma redução drástica no número de acordes e no vocabulário das músicas de sucesso dos últimos 20 anos. E, para isso, não é mesmo necessário muito rigor científico, basta ouvir o que foi a onda de axé music e o sertanejo universitário para saber que acordes e vocabulário são mínimos em ambos. Mas, se há uma maioria do público que consome isso e rejeita músicas mais elaboradas, que requeiram raciocínio mais complexo ao seu entendimento, seria porque é disso que se compõe a maioria social?
E o fenômeno não é só brasileiro. Mas, ficando restrito ao país, podemos fazer uma analogia com o Congresso Nacional. Por mais que se queira rejeitar a ideia de que a maioria daquelas pessoas "nos representa", elas foram eleitas pelos brasileiros, assim como essa música paupérrima de acordes e vocabulário também agrada a um número maior de pessoas do que músicas e letras mais sofisticadas. Então seria esse o retrato social do Brasil atual ou seria uma tendência mundial contemporânea?
Em entrevista que realizamos em 1990, Belchior nos disse que o "artista popular não passa de um divertidor de massas. Trabalhamos com o resíduo da música e da poesia". Se ele estiver certo, seria esse o resíduo da nossa música e poesia em pleno século 21? Também em 1990, Lulu Santos afirmou, em outra entrevista conosco, que "o mercado vende o que o público quer consumir, seja o que for". Disse mais:
– Quando você ouve uma música no rádio é porque ela tem respaldo do público, simplesmente porque a audiência é baseada na configuração que o público deseja. Se houver gente interessada em consumir algo, haverá quem produza e venda.
Em artigo na Revista Bula (2015), o professor, advogado e músico Roberto T. Teodoro, depois de qualificar como MIB (Música Imbecil Brasileira) todo esse setor "baladeiro", que inclui axé, arrocha, sertanejo moderno e afins, concluiu: "Depois da hecatombe cerebral que a axé music proporcionou na década de 1990, contribuindo decisivamente na deseducação do povo brasileiro com seus versos de 'balançando a bundinha' e 'boquinha da garrafa', o sertanejo universitário, gestado pela indústria fonográfica em crise, desponta como o meio mais fácil de lucrar em cima do desejo hedonístico, cotidianamente instigado pelos meios de comunicação, que impele o jovem a aproveitar a vida a qualquer preço, de qualquer maneira, custe o que custar – incluindo o próprio senso do ridículo daqueles aos quais falta massa encefálica para perceber o quão patético é idolatrar 'artistas' incapazes de compor com vocábulos polissílabos. É quando, aos olhos de uma garota, na balada, torna-se 'bonito' ser um completo idiota. Com o sertanejo universitário, a MIB entrou definitivamente na era da imbecilidade monossilábica".
Levantamentos recentes como os espalhados por este texto mostram que a maioria das músicas do hit parade são "sertanejas modernas". Os direitos autorais, de vendagens e frequência de shows, não param de bater recordes. Todas as semanas, aparece uma nova "dupla sertaneja". Serão de fato sertanejas? A que distância esses artistas estão de Tonico e Tinoco? Estarão mais perto da pop arte internacional de consumo de massa como o reggaeton centro-americano ou das estrelas pop dos EUA? Será que conhecem sua própria história?
Bem, pelo menos um deles, com certeza, sim. O paranaense Michel Teló montou um musical, em 2017, intitulado Bem Sertanejo (que originou o álbum homônimo), com a intenção de contar a história completa da música sertaneja desde suas origens remotas (que para ele é nos anos 1920 com Cornélio Pires). Nesse espetáculo, os atores iniciam trajados de caipiras (como o Jeca Tatu de Monteiro Lobato) e vão alterando suas posturas e indumentárias até chegar ao "universo pop multimídia da música sertaneja atual".
Sobre Michel Teló, em seu começo de carreira, o apresentador Ratinho comentou que ele fazia "qualquer coisa, menos sertanejo" e acrescentou "sei lá o que é aquilo que o Teló faz". O apresentador não percebeu que Teló levava consigo o vanerão gaúcho, fortemente presente no Paraná e no Mato Grosso do Sul. Apesar de todo o seu cabedal de conhecimentos e de ser de fato um bom músico e multi-instrumentista, Teló é internacionalmente conhecido pelo hit Ai se Eu te Pego, uma composição fraquíssima do ponto de vista técnico, com uma letra mínima e uma música equivalente. Isso significa que mesmo que o artista tenha conhecimentos teóricos e capacidade técnica, nesse meio, terá de render-se às reduzidas exigências estéticas de seu público consumidor? Qual o discernimento desse público? O que autoriza afirmar que o "universitário baladeiro" tem um arcabouço cultural maior do que o público e os personagens matutos, porém ladinos, de Mazzaropi?
O fato inegável é que as letras e harmonias complexas da MPB restringem-se hoje a percentuais miseráveis do mercado. Resistem o rock, o samba, o sertão nordestino e a música nativa do Rio Grande do Sul, além das do Norte, como o carimbó, mas todos restritos a áreas específicas e sem a mesma arcada hegemônica nacional desse dito moderno sertanejo. A chamada música sertaneja de raiz tenta sobreviver e segue a reboque do tal "universo pop multimídia da música sertaneja atual", como diz a divulgação do espetáculo de Teló, seja lá o que isso signifique.
Mas, com certeza, deve significar muito, caso contrário não seria hegemônico. Sem fazermos juízo de valores, sem buscarmos socorro em Nietzsche ou em Hobbes, não quer dizer que seja "bom ou mau", só hegemônico, e isso precisa ser decodificado, sob pena de não compreendermos nosso próprio tempo.
O que se passa aqui ocorre de forma mais ou menos semelhante em grande parte do mundo ocidental atualmente. Estará a nossa civilização abdicando da arte como cultura e optando por ela como simples elemento lúdico? Esse universo pop multimídia de que fala Teló, com seus poucos acordes e vocabulário mínimo, será o paradigma artístico dos novos tempos? Essa história é bem mais complexa do que parece, tanto que chegamos até aqui com mais perguntas do que respostas.
Mas temos certeza de que, com o que foi dito, o leitor encontrará as suas próprias respostas.