Por Henrique Mann e Leandra Vargas
Músico e historiógrafo, autor de "Som do Sul" (2002), entre outros
Professora e pesquisadora licenciada em História pela UFRGS
Em 9 de fevereiro de 1964 morria Ary Barroso, faltando poucos minutos para a Escola de Samba Império Serrano entrar na avenida com um samba-enredo em sua homenagem. Escapava assim da censura da ditadura militar, que iria instaurar-se no Brasil pouco mais de um mês depois. Mas ele não escapou do temido "lápis azul" salazarista. O "pai" do "samba-exaltação", do ufanismo pátrio através da música e, por isso mesmo, muitas vezes confundido com um conservador, não chegava a tanto e nem tão pouco. É bem verdade que foi vereador, eleito em 1946 pela União Democrática Nacional (UDN), um partido de direita, mas, durante seu mandato, cerrou fileiras com a bancada comunista contra seu colega udenista Carlos Lacerda pela construção do Maracanã.
Seja como for, com sua personalidade controvertida, ora progressista, ora conservadora, Ary Barroso é o autor de Aquarela do Brasil, considerado o "segundo hino nacional", e um dos gigantes da história da música brasileira, autor de 316 obras catalogadas, entre elas clássicos como No Tabuleiro da Baiana, Na Baixa do Sapateiro, No Rancho Fundo, Camisa Amarela e Risque. Atuou durante todo o tempo na ditadura do Estado Novo, mas nunca enfrentou problemas com a censura – apenas uma vez teve de ir ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) getulista pedir a liberação de um verso, sendo prontamente atendido. Além de radialista inovador, diretor de programas que revelaram grandes nomes da música, como compositor Ary versou sobre questões raciais e políticas, compôs até mesmo jingles publicitários e de caráter eleitoral. Nunca foi, no entanto, um autor que se marcasse por uma crítica política aguda, pelo contrário, ficou mais conhecido pela tal "exaltação" de caráter nacionalista do que por qualquer outra coisa.
O que não se sabia, até aqui, é que uma música sua não escapou à censura da longa ditadura de António Salazar em Portugal, nos anos 1930 e 40. Provavelmente, nem ele mesmo tenha tido conhecimento disso, nem ninguém, até hoje, a não ser um fadista daquela época chamado Jacinto Pereira. Está exposta no Museu do Fado de Lisboa uma letra de música com o título de Canção da Maria. O precioso papel, caprichosamente datilografado, informa que a música é do "Reportório (sic) de Jacinto Pereira", da casa de fados Retiro da Severa, conceituado reduto do fado de Lisboa nos anos 1930/40. A letra é exatamente a de Maria, com todas as palavras, pontos e acentuações, canção composta por Ary Barroso e Luiz Peixoto em 1931 e gravada por Silvio Caldas, em 1932 (disco Victor, 33594A, matriz 65587-03/11/1932). O original exposto no Museu do Fado tem sua última estrofe de seis versos riscada com o famigerado "lápis azul". Um carimbo vermelho ao lado da estrofe diz: "Recusado" pela Comissão de Programas do órgão censor de Salazar Inspeção Geral dos Espetáculos – Censura.
A partir dessa descoberta, buscamos esclarecimentos junto à direção do Museu do Fado. A diretora Sara Pereira mostrou-se surpresa. Aquela exposição foi trabalhada com cuidado, com base no livro Para uma História do Fado (2004), do conceituado historiador português Rui Vieira Nery. Essa informação não consta nem no Museu e nem no livro. Sara disse-nos que solicitou esclarecimentos à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). O dr. Pedro Felix, por ela encarregado de ajudar-nos junto ao acervo do museu, concluiu que não há naquela instituição nenhuma gravação ou registro da música e nem de Jacinto Pereira, além daquele. Até o presente momento, não houve manifestação da SPA, apesar da solicitação feita pelo Museu do Fado sobre a existência de registro da composição.
Prosseguimos então nossa busca e encontramos uma foto de Jacinto Pereira a tocar ao lado de Alfredo Marceneiro (este sim um renomado fadista lisboeta) e dois artigos do Diário de Lisboa, um de 1938, outro de 1940, sobre apresentações de Pereira no Retiro da Severa, à Rua António Maria Cardoso, nº 5. Até agora, nada nos autoriza afirmar que Jacinto tenha tentado apropriar-se da música de Ary Barroso e Luiz Peixoto, nem isso é o que há de mais importante nessa história. Não podemos, porém, deixar de registrar que, em todas as (muitas) situações em que encontramos em Portugal, por exemplo, poemas musicados de Casimiro de Abreu com nomes diferentes do original, o título alterado e a autoria suprimida, estava implicado, sim, uma tentativa de apropriação de autoria.
Nesse caso, pode não ter sido isso. Encontramos um anúncio do Diário de Lisboa dando conta de uma "noite luso-brasileira" no Retiro da Severa, em 25 de outubro de 1935. Há, também, na lei de Direitos Autorais portuguesa de 1927, algumas coisas bastante confusas. Uma delas é sobre um "fadista estilar" uma determinada música e, assim, obter direitos sobre ela, mas sem ser-lhe facultado o direito de omitir a autoria original. No Brasil, isso ocorre de outra maneira, mas guarda semelhança, quando alguém faz uma "versão" de uma música estrangeira, pode tornar-se "parceiro", mas deve citar a autoria e o título original, além de recolher os direitos autorais. Então andamos a tentar elucidar: por que essa música foi apresentada à censura salazarista com o título alterado? Por que a autoria foi omitida?
Isso tudo será objeto de aprofundamento no livro que editaremos sobre as relações históricas entre a música de Portugal e do Brasil através do tempo, que são muitas, intensas e profícuas.No entanto, se registros e autorias ainda carecem de maiores exames e pesquisa, há uma coisa sobre a qual não resta nenhuma dúvida porque a prova é cabal, documental e definitiva e está exposta como uma chaga no Museu do Fado de Lisboa: Ary Barroso e Luiz Peixoto foram censurados pelo regime salazarista. Isso mostra a boçalidade de qualquer ditadura, seja qual for seu matiz ideológico.
É coisa séria e triste, mas tem um lado irônico, quase cômico: eles podem ter feito isso sem saber que estavam a censurar o autor de Aquarela do Brasil. Se tivessem censurado algum contemporâneo de Ary Barroso, como Noel Rosa ou Moreira da Silva, até seria mais compreensível, visto que estes eram pândegos, irônicos e mordazes em suas composições. Mas Ary Barroso e Luiz Peixoto? Demonstração inequívoca do quanto pode ser burra e estúpida qualquer forma de censura às artes por governos ditatoriais em qualquer lugar e a qualquer tempo. Que sirva de ensinamento neste momento em que pendemos perigosamente sobre o abismo do obscurantismo.
Estes foram os versos cortados da música de Ary Barroso e Luiz Peixoto pelos censores de Salazar:
"Quando eu casar contigo
Tu vais ver que perigo
Isso vai ser: oh, meu Deus.
Vai nascer todos os dias
Uma porção de Marias
De olhinhos da cor dos teus"
Há aqui alguma justificativa para tal brutalidade?