Por Marcelo Rocha
Doutor em Teoria Literária, professor da Unipampa, autor de "Enquanto Caio"
Em 10 de maio de 1933, o ministro da Propaganda de Hitler discursava, entusiasmado, durante a queima de mais de 20 mil livros, em Berlim. Diante da imensa fogueira, Joseph Goebbels vociferava: "Esta noite vocês fazem bem em jogar ao fogo essas obscenidades do passado. Dessas cinzas irá se erguer a fênix do espírito novo". A cada livro jogado às chamas, era feito um discurso preliminar, "justificando" a destruição. "Contra a exacerbação dos impulsos e a análise destrutiva da psique, entrego às chamas as obras de Freud". E assim por diante. Naquela data fatídica, Zola, Brecht, Proust e Hemingway foram alguns dos autores que alimentaram o fogo do ódio nazista.
A leitura e a literatura são consideradas, com frequência – e com certa razão –, inimigas do autoritarismo. Alberto Manguel, em seu livro Uma História da Leitura, conta, por exemplo, que no regime do Khmer Vermelho, de Pol Pot, no Camboja, as pessoas que usavam óculos eram perseguidas, pois se supunha que sabiam ler e, por consequência, poderiam contrariar as informações oficiais do governo. Já no Chile, em 1981, a junta militar liderada por Pinochet baniu D. Quixote, pois entendeu que o livro de Cervantes continha um apelo à liberdade individual e ataques às autoridades constituídas.
O Brasil não ficou atrás e também teve seu index prohibitorum. Durante o Estado Novo (1930–1945), a polícia carioca realizava diligências para apreensão de livros considerados nocivos. Dentre os títulos condenados estavam Capitães de Areia, de Jorge Amado, e até Tarzan, o Invencível. Este último por empregar a palavra "camarada", própria, segundo os avaliadores, dos simpatizantes do comunismo.
A partir da ditadura militar, em 1964, a censura aos livros centrou-se, em especial, nas temáticas relativas à "subversão" e à "pornografia", embora, na prática, os critérios para as apreensões fossem difusos. Segundo Hallewell, em O Livro no Brasil: Sua História (1982), as obras eram confiscadas por "falarem do comunismo, porque o autor era persona non grata do regime, por serem traduções do russo ou simplesmente porque tinham capas vermelhas". Assim, livros como Dez Histórias Imorais, de Aguinaldo Silva, Zero – Romance Pré-histórico, de Ignácio de Loyola Brandão, e Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós, chegaram a ser publicados e comercializados, mas proibidos mais tarde sob acusação de "exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes".
Interessante era o caso da escritora Cassandra Rios, pseudônimo de Odete Rios, uma das autoras campeãs de vendas e proibições nos anos 1960 e 1970. Cassandra escrevia sobre homossexualidade e erotismo, relacionando, também, política e sexo. Os textos de Cassandra foram considerados "atentados à moralidade pública". Porém, a proibição virou estratégia de marketing e, abaixo do título de uma de suas obras, Tessa, a Gata, podia-se ler: "Um novo sucesso da autora mais proibida do Brasil".
Na coletânea de crônicas A Alquimia da Quitanda (2016), Ferreira Gullar traz outro episódio inusitado a respeito da censura aos livros. Em 1968, o poeta foi preso porque a polícia achara em sua casa o original do livro Do Cubismo à Arte Concreta. Os agentes concluíram que "cubismo" tinha relação com Cuba.
De modo geral, como já escreveu Roger Chartier, a leitura não é uma invariante histórica. As transformações vinculadas a ela dependem de formas de sociabilidade, além de fatores econômicos e materiais, de modo que as concepções postas em circulação por grupos sociais influenciam no próprio processo de leitura. No entanto, cumpre lembrar o que pode parecer um truísmo: o discurso literário está ligado à mimese, ou seja, à representação, e não ao real. Em sua concepção estética, a literatura possui autonomia para facultar possíveis leituras da realidade a partir do contato com a alteridade – inscrita no texto – e que pode implicar identificação, negação, adesão ou indiferença a determinadas perspectivas. Boicotar ou censurar uma obra de arte é, de certa forma, obstar o diálogo.
Com efeito, a obsessão condenatória de setores da sociedade a determinadas manifestações simbólicas, como temos visto, poderá acabar – mais adiante – no paroxismo caricato de uma perseguição a Eurípedes ou Sófocles, por exemplo, por incentivo a crimes como parricídio e incesto. E, quando chegarmos aí, será tarde demais: nada apagará a imensa fogueira da intolerância.