Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor
A casa dormia, a cidade dormia, Kafka então escrevia. Um dia Max Brod convenceu seu amigo escritor a ir num encontro com um editor. Foram, e o primeiro a falar foi Max, que exaltou um livro do amigo. Depois, foi a vez do editor. Kafka, como sempre, só escutava. Ao final da reunião, disse: “Minha sugestão é que não me edite”.
Jorge Luis Borges afirmou que Franz Kafka (3/7/1883–3/6/1924) é o número 1 dos escritores do século 20. Já Amos Oz escreveu que Kafka foi o maior profeta do século 20, capaz de prever a desumanização e as tiranias, a crueldade do poder e a impotência do ser humano. Ambos começaram a ler Kafka na adolescência e foram seus leitores por toda a vida.
Os adolescentes são seus leitores, o hashtag com a palavra Kafka tem mais de 40 milhões de visualizações. O entusiasmo dos jovens decorre dos temas como o da solidão, conflito com o pai, o desamparo, o poder opressivo. A opressão está na primeira frase dos dois livros mais famosos do escritor. A Metamorfose: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama transformado num inseto”. Já O Processo começa assim: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Situações estranhas num mundo absurdo que geram desamparos sem fim. Kafka descreveu o mundo como desloucado, revelando como o fato louco é que o mundo louco seja considerado normal. Os autores escrevem à beira do abismo, já Kafka escreveu desde dentro deste, e desde aí se pode melhor entendê-lo. Entretanto, há esperança, é preciso imaginar o amanhã, mas falta pouco para se pensar como Kafka ao dizer: “A esperança existe mas não para nós”.
O livro mais lido de Freud é o Mal estar na Cultura, em alemão, Unbehagen in der Kultur, sendo que a palavra unbehagen significa “desprotegido”, “desamparo”. O desamparo é a essência da existência, tanto em Kafka como em Freud. A palavra unbehagen se associa ao termo Unheimlich – estranho, sinistro –, título de um ensaio essencial da psicanálise. Significa o não familiar, o que deveria ter permanecido oculto e, ao vir à luz, aterroriza. O desconhecido assustador está tanto na ficção de Kafka como em Freud, que teorizou a partir de conceitos como inconsciente, pulsões, entre outros.
Reiner Stach é autor da trilogia sobre a vida e a obra de Kafka, biografia saudada como a mais alta realização nesse campo. Nela se pode ler como o escritor desde criança estava familiarizado com pessoas degradadas em animais. Seu pai adorava dizer da cozinheira que era uma “vaca”, o ajudante da loja ele chamava de “cão doente”, o filho era um “porcão”. O mais desprezado dos animais é o inseto, daí a praga, a barata, e o escritor cria um inseto para escrever sua Metamorfose.
Stach destaca alguns dos pontos centrais da obra de Kafka: pai, judaísmo, doença, assalariado, solidão, processo criativo, batalha em torno da sexualidade e do casamento. Chama atenção para o cômico e o humor na sua obra, mas antes dele foi Walter Benjamin que escreveu ser o humor o elemento essencial em Kafka. Tardei em entender esse humor. É um humor original, um humor ácido, humor do desamparo.
O adjetivo “kafkiano” expressa a vida como absurda, angustiante, terrorífica, mas desde a década de 1990 é preciso incluir nesse adjetivo o humor. Stach escreve que cada vez mais leitores percebem o quanto há de humor em sua obra. A descoberta do sentido de humor em Kafka explica por que ele e seus amigos riam quando o escritor lia em voz alta seus escritos. O humor aliviou o escritor, que se casou com a escrita, sua terapia. Kafka foi herdeiro do humor judaico, dos comentários talmúdicos, medita sobre a lei e seus mistérios, como no livro O Processo. Trabalha ainda com parábolas, fábulas, contos, que são como reflexões rabínicas.
Teve ainda interesse pela cabala e o sionismo, sonhou em ir para Israel. Sua tristeza sobre a humanidade pode ser contagiante. Sintonizar com Kafka é apreender com o não pertencente, compartir a solidão do humilhado. Quando a sintonia aumenta se requer ajuda em apoios como Chaplin e na renovada Sbórnia.
Kafka escreveu: “Vivo na minha família mais estranho do que um estrangeiro”. Talvez uma das coisas que nos tocam é esse sentimento de estrangeiro, é o estranho inconsciente que vive na gente. O escritor se aliviou da solidão escrevendo, conversando, lendo, e morreu sem saber de sua genialidade.
Finalmente, indico um livro com 30 histórias breves: Narrativas do Espólio. Um exemplo dessa obra: “A verdade sobre Sancho Pança”, na qual o gordinho pequeno foi quem inventou Dom Quixote e suas quixotadas o divertiam. É a graça do humor na inversão da lógica comum. Um presente final de Kafka para nós: “Quem tem a capacidade de ver a beleza não envelhece”.
Ah, de que mesmo ri Kafka? Do sucesso.