Uma das sombras de Porto Alegre é o notório caso dos assassinatos cometidos por José Ramos e Catarina Palse, na famosa Rua do Arvoredo — hoje, Fernando Machado —, no Centro Histórico. A história misturada com lenda urbana, datada de 1863, continua fascinando e, agora, ganha um novo capítulo, totalmente ficcional, pela mente e mãos do escritor e roteirista castilhense Tailor Diniz: Os Canibais da Rua do Arvoredo (Lucens Editorial – 208 páginas.
A obra, que está disponível para compra nas principais livrarias físicas e digitais, atualiza o caso que chocou o mundo — inclusive, o naturalista Charles Darwin —, colocando os seus dois protagonistas, também chamados de Catarina e José, nos dias de hoje, a viver no local em que moraram os assassinos do passado. Logo, a dupla começa a ter atitudes semelhantes às dos antigos inquilinos do local e, a partir disso, uma nova onda de mortes começa a aterrorizar a capital dos gaúchos.
A questão do canibalismo, que está presente no título do livro, também chega remodelada. Saem as famosas linguiças e os entram hambúrgueres gourmet — a matéria-prima, porém, segue sendo a carne humana. Ao mesmo tempo que existem atualizações do caso, também aparecem novos elementos, como o narrador. Este personagem, Zìnìdt Otten, um observador onipresente, apresenta-se como membro de uma organização internacional, cujo objetivo maior é dominar o mundo.
Em um tom satírico, Diniz utiliza este seu narrador, que se autointitula um filho do globalismo, como forma de fazer piadas sobre o que considera "delírios" dos tempos de redes sociais, como pessoas que acreditam que a vacina contra a covid-19 implanta nos imunizados chips que podem manipular mentes. Tal inventividade rendeu para o escritor de 68 anos, conforme ele mesmo comemora, o lançamento de maior repercussão de sua carreira.
— Quando pensei sobre os crimes do José e da Catarina, imediatamente percebi que a história estava muito batida. Então, disse: "Por que não faço uma releitura para o tempo presente?". Assim, teríamos uma coisa nova. A história, as pessoas podem esquecer, porque o ser humano é um ser que esquece, mas existe a lei do eterno retorno. Então, imaginei como o caso seria tratado nos dias de hoje — explica Diniz, que transformou a sua Catarina e o seu José em estudantes universitários: ela, de Medicina, e ele, de Gastronomia.
De cinema
O livro Os Canibais da Rua do Arvoredo tem uma particularidade: faz um caminho inverso do tradicional. A história surgiu como um argumento de roteiro de cinema, encomendado pela Paris Filmes e pela Accorde Filmes. Surfando no fenômeno dos true crimes, o filme terá as suas filmagens em 2025, mas ainda sem data de lançamento definida. Depois de entregar o script, porém, Diniz decidiu adaptar a história para um romance.
Para Diniz, inclusive, a imaginação já foi adiante e começou a imaginar quais artistas seriam os protagonistas de sua aventura de terror. Na cabeça do autor, a Catarina perfeita teria o perfil de Mariana Ximenes, mas a idade da atriz não se encaixa com a de sua personagem, que é bem mais jovem. Já José, como é visto na capa do livro, lembra os traços do artista João Petrillo. A escolha, porém, já está dando os primeiros passos, conta o escritor:
— Inclusive, teve uma atriz muito conhecida, acho que até mais conhecida que a Ximenes, que leu o roteiro, chegou na página 20 ou 30 e disse: "Não, não, não. Eu não vou aguentar isso aqui, vou ficar perturbada com isso". Não vou dizer o nome, mas é uma atriz que tem o perfil mais parecido com o da Catarina, em questão de idade, mas ela arrepiou (risos), porque a Catarina do livro vai dando corda e, depois, vem a machadada.
História/lenda
Em 1996, o historiador Décio Freitas lançou o livro O Maior Crime da Terra: O Açougue Humano da Rua do Arvoredo (Editora Sulina – 144 páginas), após uma pesquisa aprofundada sobre o assunto. Nele, o autor defende que o caso das linguiças, questionado por alguns pesquisadores e tido como lenda urbana, realmente aconteceu, só que não aparece nos autos do processo porque houve um pacto entre autoridades e comunidade para abafar o caso.
— Houve este acordo silencioso para ignorar o crime e esquecer ele. Esta foi a única forma da sociedade da época de conviver com essa tragédia, de ter consumido carne humana. Optaram pelo esquecimento. Essa é a tese do Décio e é por isso que o caso das linguiças não aparece no processo. Mas eles realmente mataram pessoas — conta Diniz, que acha interessante o argumento que foi desenvolvido por Freitas.
Outros livros sobre o caso incluem A História Devorada: No Rastro dos Crimes da Rua do Arvoredo (Editora Escritos), de 2004, escrito por Cláudio Pereira Elmir, que voltou ao tema ao lado de Paulo Roberto Staudt Moreira com Odiosos Homicídios – O Processo 5616 e os Crimes da Rua do Arvoredo (Editora Unisinos), lançado em 2010. O jornalista David Coimbra também fez a sua contribuição ao lançar, em 2005, Canibais: Paixão e Morte na Rua do Arvoredo (Editora L&PM Pocket).
O caso ainda ganhou outras mídias. Um ano antes de O Maior Crime da Terra, por exemplo, o filme O Caso do Linguiceiro, com direção de Flávia Seligman e Francisco Ribeiro, foi apresentado no Festival de Gramado. Nove anos depois, a RBS TV exibia Os Crimes da Rua do Arvoredo, dentro do projeto Histórias Extraordinárias, com direção de Rogério Brasil Ferrari. Já em 2006, ganhou uma versão com projeção nacional com a Rede Globo dedicando um episódio de Linha Direta Justiça ao caso, com os atores Carmo Dalla Vecchia e Natália Lage vivendo José Ramos e Catarina.
No teatro, o episódio rendeu peças como O Duque, a Cantora e a Linguiça, de Dilmar Messias, em 1978; Os Crimes da Rua do Arvoredo, de Camilo de Lélis, em 1999; O Linguiceiro da Rua do Arvoredo, de Daniel Colin, em 2012; além de Santo Qorpo ou O Louco da Província, de Inês Marocco, de 2014, inspirada em Cães da Província (Editora Mercado Aberto), de Luiz Antônio de Assis Brasil, de 1987.
Mais recentemente, em 2021, um podcast estrelado por Cleo Pires, Silvero Pereira e Lucélia Santos, A Febre de Kuru, com 10 episódios, foi lançado exclusivamente pela plataforma Orelo. Nela, uma dramatização em áudio dos assassinatos foi realizada, em capítulos que giravam em 12 minutos cada. Ou seja, José Ramos e Catarina Palse seguem cometendo os seus crimes, em looping, mas, felizmente, apenas nas artes.