Uma lenda urbana de Porto Alegre com enredo que faria tremer até mesmo o mais tarimbado roteirista de terror de Hollywood retorna ao imaginário popular em novo formato: uma série em áudio, a radionovela da era dos podcasts.
A Febre de Kuru traz Cleo e Silvero Pereira, que vivem, respectivamente, Catarina Palse e José Ramos, casal responsável pelos famigerados crimes da Rua do Arvoredo, na Porto Alegre do século 19. Entre os anos de 1863 e 1864, a dupla matava as suas vítimas para roubar os seus pertences e, para não deixar vestígios, a carne dos mortos era transformada em linguiça e vendida no açougue de Carlos Claussner, também cúmplice.
Os crimes de fato ocorreram, mas a parte dos embutidos humanos é objeto de controvérsia. A história, com o passar dos anos, tornou-se uma espécie de lenda urbana gaúcha e tem sido contada de diferentes formas (leia abaixo).
Cleo, que tem proximidade com o Rio Grande do Sul, tendo estrelado duas obras que recontam importantes trechos da história do Estado – O Tempo e o Vento (2012) e Legalidade (2019) –, não conhecia o episódio que ocorreu na Rua do Arvoredo (atual Fernando Machado). Porém, não demorou para ser fisgada pelo desafio de viver a imigrante húngara Catarina.
— Essa é uma história que me deixou muito intrigada quando me foi apresentada. Topei na hora. É uma responsabilidade grande contar a história, principalmente quando olhamos para o público do Rio Grande do Sul, que conhece cada detalhe — diz.
Silvero Pereira, que atuou na cena teatral gaúcha, já havia sido apresentado à lenda. Por isso, além do roteiro de A Febre de Kuru, visitou seu passado para criar o famoso linguiceiro.
— Quando realizei o meu projeto BR-Trans, entre 2012 e 2013, morei na Lima e Silva, próximo ao local dos crimes. Então, resgatei minhas memórias do que ouvi na época e, com isso, fui criando o meu José Ramos — conta o ator cearense.
Preparação
A Febre de Kuru, lançamento exclusivo e gratuito da plataforma Orelo (disponível na Apple Store e no Google Play), dramatiza os crimes da Rua do Arvoredo. Além de Cleo e Silvero, Reginaldo Faria, Lucélia Santos e Negra Li emprestam as suas vozes para os personagens. A atração é dividida em 10 episódios, com cerca de 12 minutos cada – oito já estão disponíveis. Devido à pandemia, os capítulos foram gravados em sete cidades, de forma remota.
Cleo conta que estudou a fundo o material entregue pelo diretor Toni Sader, mas que foi além, pesquisando sobre as pessoas envolvidas nos crimes e, também, debruçando-se sobre a investigação para entender todo o caso e, então, dar vida à sua personagem.
— Foi uma experiência única. Primeira vez atuando e produzindo um projeto nesse viés.
É um desafio. Existe toda uma preparação vocal para que a dicção e as entonações sejam muito claras e coerentes, uma emoção que a voz precisa carregar para tocar o ouvinte.
Sobre o “retorno” das radionovelas, Silvero acredita que a sociedade vive ciclos de criação e recriação:
— O grande desafio é trabalhar com a imaginação, construir os sentimentos do personagem sem estar no espaço físico, com adereços, e sem contracenação, valendo-se de muita concentração e imersão na cena.
Episódio inspirou cinema, televisão, peças e livros
O fascinante caso dos crimes da Rua do Arvoredo, em seus mais de 150 anos, contou com várias versões e adaptações, o que colaborou para que a história se instalasse no imaginário dos porto-alegrenses. A Febre de Kuru continua um álbum que já conta com filme, especiais de TV, peças teatrais e livros.
Em 1995, o filme O Caso do Linguiceiro, com direção de Flávia Seligman e Francisco Ribeiro, foi apresentado no Festival de Gramado. Nove anos depois, a RBS TV exibia Os Crimes da Rua do Arvoredo, dentro do projeto Histórias Extraordinárias, com direção de Rogério Brasil Ferrari. Já em 2006, a história ganhou projeção nacional com a Rede Globo dedicando um episódio de Linha Direta Justiça ao caso, com os atores Carmo Dalla Vecchia e Natália Lage vivendo José Ramos e Catarina.
No teatro, o episódio rendeu peças como O Duque, a Cantora e a Linguiça, de Dilmar Messias, em 1978; Os Crimes da Rua do Arvoredo, de Camilo de Lélis, em 1999; O Linguiceiro da Rua do Arvoredo, de Daniel Colin, em 2012; além de Santo Qorpo ou O Louco da Província, de Inês Marocco, de 2014, inspirada no livro Cães da Província, de Luiz Antônio de Assis Brasil, de 1987, que tem os Crimes da Rua do Arvoredo como pano de fundo.
Outros livros sobre o caso incluem O Maior Crime da Terra: O Açougue Humano da Rua do Arvoredo, lançado em 1996 por Décio Freitas, e A História Devorada: No Rastro dos Crimes da Rua do Arvoredo, de 2004, escrito por Cláudio Pereira Elmir, que voltou ao tema ao lado de Paulo Roberto Staudt Moreira com Odiosos Homicídios – O Processo 5616 e os Crimes da Rua do Arvoredo, lançado em 2010.
O jornalista David Coimbra também fez a sua contribuição ao lançar, em 2005, Canibais: Paixão e Morte na Rua do Arvoredo.