Em seu primeiro livro, Morgana Kretzmann retratou um tipo de tragédia que via se repetir em Três Passos, cidade interiorana no noroeste do Rio Grande do Sul onde se criou: meninas dolorosamente marcadas ainda na infância ao serem vítimas de abuso sexual cometido por homens de seus núcleos familiares. Ao Pó (Editora Patuá, 2020) foi reconhecido com o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Romance de Estreia.
Apesar de escrever uma história ficcional, Morgana saiu a campo para fazer pesquisas e ouvir o trauma que essas mulheres carregavam desde crianças, algo difícil de superar mesmo com a passagem dos anos. Criou duas personagens, Sofia e sua irmã, ambas alvos das violações do tio. Levou sete anos para concluir a obra.
— Cresci ouvindo histórias de pessoas que foram abusadas por quem é da família ou conhecido da família, normalmente homens "de bem" que dizem não fazer mal a ninguém. São crimes que nunca foram denunciados, simplesmente porque se tornariam uma vergonha para as famílias. Comecei a fazer uma longa pesquisa, entrevistando muitas mulheres.
Usou do mesmo processo de buscar na realidade a matéria-prima para suas histórias ao elaborar seu segundo romance, Água Turva, recém-lançado pela Companhia das Letras. Ambientado no Parque Estadual do Turvo, em Derrubadas, onde o Salto do Yucumã desponta como uma das mais belas atrações da natureza e a mais importante queda d'água longitudinal do mundo, volta e meia alvo de discussões sobre a construção de uma hidrelétrica, o livro mistura o drama das relações humanas à temática ambiental. Será lançado na Alemanha, pela editora Suhrkamp, uma das mais importantes da Europa, e na França, pela Actes Sud.
Três mulheres assumem a narrativa da história: uma guarda florestal responsável por cuidar do parque, uma líder de um grupo de caçadores que vive do contrabando de animais silvestres e uma jornalista que trabalha como assessora de um deputado corrupto. Esta revela um esquema ganancioso que pode destruir a diversidade da fauna e da flora do local:
— São três mulheres que não são boas nem más, não são heroínas. O arco narrativo delas não inclui uma busca pela redenção. Elas apenas fazem o que acreditam que precisa ser feito. Enquanto uma faz de tudo para preservar o parque, a outra faz de tudo para sobreviver e para que seu grupo sobreviva, enquanto a jornalista faz de tudo para se vingar do deputado corrupto. No início da história elas são inimigas, por questões do passado que não foram resolvidas. Depois, passam a ser muito amigas. Uma das coisas que o livro trata, e o que mais me comove, é a maneira como nasce a amizade e o amor entre as três.
Além do ímpeto de criar personagens femininas, Morgana, radicada em São Paulo, também tem a pulsão de dar espaço a questões ambientais. Com os avós tendo morado em uma propriedade vizinha ao Parque do Turvo, cresceu ouvindo histórias sobre animais silvestres que apareciam no pátio da residência, como pumas e tamanduás, o que a fez internalizar desde cedo o valor da natureza e a importância de preservá-la. Ao colocar holofotes na maior área florestal preservada no Rio Grande do Sul, com cerca de 17 mil hectares de mata nativa, acaba levantando uma denúncia a eventuais projetos que possam prejudicar o lugar.
— No meu processo de pesquisa, que me levou várias vezes à região para entrevistar funcionários e moradores, fiquei sabendo que existe mesmo uma ideia estapafúrdia de construção de uma hidrelétrica que colocaria parte do parque debaixo da água, ameaçando o último reduto da onça-pintada — diz a escritora, que tem formação em Gestão Ambiental.
Seu próximo romance já está delineado e também sairá pela Companhia das Letras. Safra será ambientado em uma região remota do Brasil e vai retratar a vida de trabalhadores rurais e o luto de uma mulher que perdeu a sobrinha em um acidente com uma colheitadeira de soja, tratando de questões de terra e de meio ambiente. Para Morgana, a temática ambiental é uma causa que a literatura pode ajudar a amplificar:
— Artista não deve nada, cada um faz o que acredita, mas me sinto no dever de falar sobre questões ambientais, porque estamos passando por um momento muito crítico no mundo. Usar uma linguagem acessível às pessoas e levar um pouco de conscientização sobre aquecimento global e outras pautas torna-se imprescindível para mim.