Dois adjetivos costumam acompanhar o nome de Dyonelio Machado. O primeiro é maldito, já que, além de um dos principais nomes da literatura do Rio Grande do Sul e até nacional, foi um militante comunista preso pela ditadura de Getúlio Vargas. O segundo é esquecido, em parte por causa de seu posicionamento político, mas também pela complexidade de sua escrita. É esse ostracismo que pesquisadores de sua obra tentam reverter.
No ano passado, diante da rumorosa demolição da casa onde Caio Fernando Abreu viveu no Menino Deus, em Porto Alegre, Jonas Dornelles, 37 anos, doutorando em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), ficou curioso para saber em que pé estava a residência de Dyonelio no bairro Petrópolis. Descobriu que o casarão de número 131 na Rua General Souza Doca, erguido em 1942 e habitado pelo escritor por cerca de 10 anos, até mudar-se com a esposa Adalgiza para um apartamento na Borges de Medeiros, estava desabitado e à venda. O medo era que virasse escombros.
Conseguiu documentos comprovando que o local havia sido lar do autor de Os Ratos (1935) e O Louco do Cati (1942), obras-primas de Dyonelio, sendo que a primeira foi alvo de elogios de ninguém menos que Guimarães Rosa, que considerou a saga do personagem Naziazeno para quitar a dívida com o leiteiro como "um dos 10 maiores romances brasileiros". Na construção de dois pisos com paredes pintadas de um vermelho agora desbotado pelo tempo, foram escritos ao menos dois livros, Desolação (1944) e Passos Perdidos (1946), além de ter tido início a pesquisa para Deuses Econômicos (1966).
Responsável por acionar a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) da prefeitura de Porto Alegre e alertá-los que a residência tinha valor histórico, Dornelles conseguiu uma vitória: em novembro de 2022 o imóvel passou a integrar o patrimônio cultural de Porto Alegre. Com a inclusão no inventário, a construção não pode ser demolida, ainda que seja de propriedade particular, e qualquer alteração em sua estrutura precisa ser comunicada.
Desde então o pesquisador da vida e obra de Dyonelio Machado vem promovendo campanha nas redes sociais para difundir a literatura e o legado do escritor, além de realizar caminhadas pelo Petrópolis com trajetos que passam pelo casarão, apreciado pelos curiosos apenas do lado de fora.
— O próximo momento da luta é saber o que será feito com essa casa. Podemos dar outro destino a um espaço que tem importância histórica. Quando comecei a conversar com as pessoas e a falar da casa do Dyonelio, todo mundo desacreditou. Falaram: "Demoliram a casa do Caio Fernando Abreu, que é muito mais conhecido que o Dyonelio. O Dyonelio ninguém conhece. Larga de mão!". E a segunda coisa que me falaram: "Para que manter a casa do escritor? Qual é o interesse?" Imagina estar no lugar que o Dyonelio habitou. Fiz doutorado sanduíche na Alemanha e tive a experiência de conhecer a casa do Goethe, ver onde o Schiller nasceu — diz Dornelles.
O sonho é transformar o local em um espaço cultural que mantenha acesa a contribuição de Dyonelio Machado para a cultura. Nascido em 1895 em Quaraí, na Fronteira Oeste, ele tinha outras habilidades além da escrita. Veio a Porto Alegre para estudar Medicina, especializando-se em psiquiatra. Também atuou como professor no magistério e foi jornalista. Em 1935, foi preso por liderar uma greve dos gráficos contra a extinção da Aliança Libertadora Nacional, sendo conduzido para uma prisão no Rio. No trajeto, dentro do navio, soube que era agraciado com o Prêmio Machado de Assis pelo livro Os Ratos. Na prisão, conheceu Graciliano Ramos, outro comunista de carteirinha, e consolidou sua ideologia. Em 1947, foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
"Aqui não querem nada comigo. É uma pena. Não há interesse", confessou o próprio Dyonelio em entrevista publicada em agosto de 1983 no jornal Zero Hora. Para outro pesquisador e guardião de seu legado, Camilo Mattar Raabe, responsável por publicar Proscritos, romance que Dyonelio escreveu em 1964 e permaneceu inédito até 2014, o comunismo escancarado e o alto nível de sua literatura mantiveram-no afastado do grande público.
— O Dyonelio tem a marca do cárcere. As pessoas viam ele como um outsider. Inclusive, ele dizia que a cidade de Porto Alegre era extremamente provinciana e não queria saber da literatura dele. E tem outra questão: a obra do Dyonelio tem uma complexidade e uma abertura de sentidos muito poderosa. Não é panfletária. É humanista e crítica. A linguagem dele era muito mais rebuscada que a do Erico Verissimo, então ele não conseguiu acesso a um meio que não é muito letrado. Porque o Dyonelio não mastiga nada para o leitor. Isso incomoda — reflete Raabe, que se prepara para publicar, em colaboração com Jonas Dornelles, um livro reunindo cartas escritas por Dyonelio.
A comparação com Verissimo não é casual. Os dois não só foram contemporâneos como vizinhos no bairro Petrópolis. Essa relação também é valorizada nas caminhadas literárias, que iniciam na Praça Mafalda Verissimo, parque batizado com o nome da companheira de Erico, e rumam para a casa do autor de O Tempo e O Vento (1949-1961), na Rua Felipe de Oliveira, onde atualmente vive seu filho, Luis Fernando Verissimo. Não deixam de passar pelo terreno onde antigamente existia a casa do também escritor Cyro Martins, autor de Porteira Fechada (1944), na esquina da Borges do Canto com a Ferreira Viana, onde foi construído um condomínio.
— Em nenhum livro encontrei que Erico Verissimo, Dyonelio Machado e Cyro Martins moraram próximos, no mesmo bairro. Os três foram da Geração de 1930, que fala do processo de modernização da cidade, da verticalização. Uma coisa tão interessante quanto essa deveria ser falada com orgulho. Precisa ser público, precisa ser falado — exalta Dornelles.
Residência preservada
Apesar da casa onde viveu Dyonelio ter virado patrimônio cultural de Porto Alegre, o destino que lhe será dado é algo que só compete ao proprietário. Mauro Biazus comprou o imóvel na metade de 2022. Segundo ele, estava abandonado e sofria invasões, o que atrapalhava os inquilinos que alugavam a residência ao lado, na esquina da Souza Doca com a Felipe de Oliveira, da qual é dono há cerca de 15 anos. Por isso decidiu adquirir a propriedade de número 131, não só com a finalidade de reformá-la, mas também dispor para locação.
Notificado pela prefeitura que a casa recém-comprada pertencera a um escritor e que não poderia mexer em sua estrutura sem comunicar, Biazus agora elabora um projeto arquitetônico onde apresentará para o município possíveis reformas, já que o imóvel está em deterioração.
— A prefeitura pediu que eu fizesse um projeto apresentando as intenções de reforma. E a prefeitura terá que assinar embaixo se eu posso ou não fazer as obras. Não tem problema nenhum se eu tiver que colocar uma placa em frente à casa informando que foi do escritor Dyonelio Machado — informou Biazus a GZH.
Presidente do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc), órgão da prefeitura que opina sobre a inclusão de bens no patrimônio, Lucas Volpato diz que a decisão de preservar a casa que foi de Dyonelio surgiu após a perda inestimável da residência que foi de Caio Fernando Abreu, que não era inventariada.
— O Compach tem consciência da grande perda que foi a demolição da casa do Caio Fernando Abreu, no ano passado. Lamentavelmente, isso serviu de alerta. A casa do Dyonelio Machado não tem uma arquitetura fabulosa, é simples, mas o fato de ali ter morado uma pessoa daquela importância caracteriza mérito para estar no inventário — argumenta.
Dyonelio musical
Com a luta pela preservação da memória do célebre maldito, Dornelles consegue jogar luz à sua biografia. Após a conquista da preservação da casa, foi procurado pelo neto de Dyonelio, o engenheiro eletrônico Sergio Bordini, 80 anos, que lhe apresentou gravações do avô tocando flauta transversal. Embora sua faceta de músico nas horas vagas já fosse conhecida, o material é raro e inédito para quem pesquisa sua história.
Filho de Cecília, a mais velha de Dyonelio, Sergio cresceu em meio aos saraus que os avós promoviam em casa. Os encontros musicais eram puxados principalmente pela avó, Adalgiza, pianista de formação e professora de piano, embora Dyonelio também gostasse de sentar-se para tocar. Em uma tarde de 1965, em visita à filha e ao genro na zona sul de Porto Alegre, o escritor executou na flauta transversal peças como Valsa, de Brahms, Minueto, de Beethoven, e Chanson Triste, de Tchaikovsky, momento que ficou retido graças ao neto que recém havia comprado um gravador de rolo.
— Ele tocava bem a flauta, mas não era sua principal atividade. O Dyonelio era escritor, preocupado com literatura e sempre disposto a falar sobre literatura. Ele tinha um conhecimento imenso, tinha lido de tudo, inclusive em grego. A cultura dele era imensa — sustenta o neto.
Ainda se espera que a profecia de Erico Verissimo sobre o vizinho e colega de ofício seja concretizada: "Um dia, alguém dirá que só agora se vê como esse escritor era importante".
Movimento Salve Dyonelio (@salvedyonelio, no Instagram)
Próxima caminhada literária pelo bairro Petrópolis: 11 de novembro, às 14h.
Ponto de encontro: Praça Mafalda (Rua Felipe de Oliveira, 1.316-1400, bairro Petrópolis, em Porto Alegre).
Participação gratuita.
Em caso de chuva, será adiada