Uma manifestação foi realizada no começo da tarde desta terça-feira (19) em frente aos escombros da casa onde Caio Fernando Abreu viveu seus últimos dias, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Com autorização da prefeitura para demolição total, o imóvel no número 12 da Rua Doutor Oscar Bittencourt foi colocado no chão na segunda-feira (18). O sobrado não era tombado.
Leitores, deputados, vereadores e representantes de entidades compareceram ao ato, que reuniu mais de 70 pessoas. Eles apoiaram livros do escritor na mureta e penduraram uma faixa em papel pardo na grade, com a inscrição: "Em luta pela memória de Caio Fernando Abreu - Aqui viveu, aqui escreveu". Levaram também um vaso com um girassol, flor que virou um símbolo do autor — ele dizia que conhecia "poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto". Enquanto ocorria a manifestação, uma retroescavadeira começou a ser operada, remexendo os escombros da casa.
Ao microfone, a professora aposentada Ani Homem, 75 anos, contou que nasceu na mesma rua e que sua mãe esperava na janela a passagem do escritor, que lhe recitava poesias.
— Os pais do Caio moravam aqui, depois o Caio morava e escrevia aqui. Botaram no lixo um patrimônio nosso — disse, emocionada.
Por anos, fãs deixavam velas e flores em frente à casa para homenagear o autor, que morreu em 1996, aos 47 anos, em decorrência de complicações do HIV. Eles viam a casa como um personagem dos textos de Caio Fernando Abreu. Em Última carta para além dos muros, ele escreveu: ''Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto". Alguns manifestantes pediram a colocação de uma placa para marcar a passagem do escritor pelo local.
A Associação Amigos de Caio Fernando Abreu foi fundada em 2011 para dar suporte ao movimento "Salve a Casa do Caio", na época em que o imóvel estava sendo leiloado. O objetivo era mobilizar agentes públicos e pessoas interessadas para transformar o lugar em um centro cultural ou, pelo menos, conseguir seu tombamento.
O advogado e ex-vereador Marcelo Sgarbossa e outros membros da associação tentaram parar na Justiça a demolição da casa, sem sucesso. Eles abriram uma ação popular por volta das 14h de segunda-feira, mas uma juíza da 7ª Vara da Fazenda Pública se isentou de julgá-la por se considerar "suspeita por foro íntimo". Quando o juiz substituto se pronunciou, no final da tarde, dando 72 horas para a prefeitura fornecer informações, a casa já havia sido demolida.
Por meio de nota, a Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade informou que a licença de demolição foi expedida em abril "de acordo com as regras de licenciamento urbanístico e ambiental da Capital". A pasta destacou que se trata de uma área particular e não consta na lista de imóveis tombados ou inventariados pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. "A análise da equipe da Secretaria é meramente técnica, seguindo o regramento vigente na Capital", conclui o texto.
O que diz a Secretaria de Cultura
O secretário municipal de Cultura, Gunter Axt, afirma que lamenta a demolição da casa. Ele relata que não sabia que o imóvel não era protegido pelo município, e também não tinha conhecimento prévio da autorização para demolição.
— Ontem eu falei com algumas pessoas, que entraram em contato me relatando que isso poderia acontecer. Comecei a buscar uma fórmula alternativa, o que não é uma coisa simples, porque os proprietários estavam no seu direito. Quando a gente começou a se mexer, a demolição já avançou — conta.
Segundo Axt, a pasta tem feito a revisão do inventário da cidade por bairros, e ainda não havia chegado ao Menino Deus. Ele reconhece a expressividade simbólica da casa, como "um ente retratado na fase final da sua literatura", e relata que, muitas vezes, a solicitação da sociedade civil contribui para a construção dos inventários:
— Não chegou nada relacionado à Casa do Caio Fernando Abreu, pelo menos não no período que estou aqui. E desconheço, na secretaria, algum processo antigo solicitando.
Axt acredita que "a cidade deve alguma coisa ao Caio" e diz que aceita sugestões para honrar a memória do autor.
Ainda não foi protocolado na Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade nenhum projeto de obra no terreno. GZH não conseguiu contato com os proprietários da área.