O feminino tem conquistado um espaço cada vez maior no debate público e, consequentemente, na literatura contemporânea. Na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, que ocorre até 15 de novembro na Praça da Alfândega, diversos debates e sessões de autógrafos evidenciam essa tendência. Nessa perspectiva, escritoras que marcarão presença no evento percebem um aumento da procura pela literatura feminina e feminista — ainda assim, há muito a avançar nesse campo.
Nos últimos anos, houve uma organização de coletivos de mulheres escritoras, o que impulsionou esse cenário literário, cultivando público, na visão de Taiasmin Ohnmacht, 51 anos, escritora e vencedora do Prêmio Açorianos de Literatura 2023 na categoria Narrativa Longa. Existe hoje toda uma movimentação na cidade nesse sentido, com promoção de eventos como saraus.
— Estamos em um momento político, para além, inclusive, daqui de Porto Alegre, que é o das minorias políticas terem mais voz, então isso, talvez, desperte um maior interesse, inclusive das mulheres que não escrevem, das leitoras — afirma.
Escritora, tradutora e professora de escrita criativa e língua inglesa, Beatriz Borges, 53, também percebe a insistência como um dos fatores para o triunfo. Ela classifica essa tendência como um movimento de libertação e de poder, posto que a mulher quase não dispõe de espaço para falar — e ainda é morta por esse motivo. Assim, ressalta que ainda existe uma grande necessidade de falar sobre feminismo, e a literatura é uma forma concreta de fazê-lo.
— A literatura feita por mulheres está no seu melhor momento, mas, mesmo assim, tem muita coisa ainda para vencer — pondera Beatriz.
Subrepresentadas
As mulheres sempre estiveram subrepresentadas no campo da literatura, lembra Taiasmin. A área produz imaginários, e, neste sentido, o imaginário social tem sido "puramente masculino", inclusive na construção de personagens — os personagens femininos carregam a representação da mulher segundo os homens. Por sua vez, quando elas escrevem, trazem outro entendimento das formas de estar no mundo e de ser mulher. Agora, há um aumento da oferta em um momento em que mais mulheres chegam ao mercado editorial, conforme a escritora.
— Contudo, não é fácil ainda para as mulheres. Tem pouco reconhecimento. Hoje em dia, publicar é algo que se democratizou. Mas fazer esses livros circularem não é tão fácil. Resgatar escritoras que não estão mais aqui, que publicaram e não tiveram reconhecimento, também é outra tarefa — aponta.
As mulheres têm um trabalho maravilhoso, e a gente tem de ouvir esse lado, porque até agora a gente só escutou a história contada pelos homens
BEATRIZ BORGES
Escritora, tradutora e professora de escrita criativa e língua inglesa
Beatriz reforça que essa é uma luta importante, pois há inúmeros materiais e legados deixados por mulheres — como Júlia Lopes de Almeida, uma autora que considera injustiçada. Na quarta-feira (1º), a gaúcha estará na Feira do Livro, às 16h, ao lado de outras mulheres, autografando a obra Abraçar e Resistir: Vozes Feministas, da qual é organizadora e que traz textos de autoras de todo o Brasil. Enquanto alguns abordam a luta feminista, muitos — inclusive os de Beatriz — não falam diretamente sobre o assunto. A ideia foi justamente apresentar autoras, mostrando sua arte e o que querem dizer.
O que move a escritora é contar a história das mulheres e lembrá-las de que têm o direito de dizer o que pensam, de se expressar e de errar — assim como os homens, que vêm praticando literatura desde que a escrita foi inventada.
— As mulheres têm um trabalho maravilhoso, e a gente tem de ouvir esse lado, porque até agora a gente só escutou a história contada pelos homens — destaca.
Taiasmin, por sua vez, será uma das integrantes da mesa redonda Entre Mulheres: Leituras, Memórias, Escritas e Afetos, no dia 11 de novembro, às 16h. O objetivo é resgatar escritoras que foram profícuas, mas não tiveram circulação. Além disso, as participantes abordarão como é estar no mundo pelo recorte da mulher. Isso porque, enquanto minoria política, as mulheres são vistas como uma massa indistinta, explica a autora. Porém, no momento em que começam a escrever e a aparecer, passam a ficar visíveis também as suas diferenças — já que elas são diversas, pois ser mulher não é uma coisa só, há muitas facetas, como ressalta. As escritoras pretendem, então, mostrar o que é essa escrita e suas diferentes facetas.
Outras formas de existir
Dar espaço para essa temática evidencia que há outras formas de existir que não apenas a masculina, hétero e branca, como as das mulheres brancas, pretas e lésbicas.
— Se a gente fica sempre em uma literatura escrita sempre pelos mesmos, que ocupam o mesmo lugar de discurso, as coisas vão ser ditas da mesma forma, mas a linguagem é muito mais rica do que isso. Será que as nossas imaginações, a nossa ideia de mundo, não se ampliariam à medida que a gente traz outras formas de contar o mundo? É a ideia de que esse imaginário social seja mais rico em termos de imagem e de linguagem. Porque isso nos faz seres humanos mais complexos — argumenta a vencedora do Prêmio Açorianos.
Há ainda o importante papel de auxiliar na luta pela igualdade.
— O meu feminismo não é um feminismo que, de maneira nenhuma, vai contra os homens. Como tudo, existem várias linhas e tendências. Não é uma igualdade da mulher ser igual ao homem, porque o homem não é igual à mulher. Uma mulher não é igual à outra, as pessoas são diferentes, mas elas merecem o mesmo respeito, o mesmo lugar. Essa é a questão — frisa Beatriz.
Muito além do feminismo
A literatura feminina vai muito além dos temas do feminismo, materializando-se nos mais diversos tópicos e obras criadas por escritoras, com impacto na vida de diferentes mulheres. Nesta segunda-feira (30), às 18h, um sarau promovido pela Academia Literária Feminina do RS (ALFRS) realizará uma homenagem às patronas da instituição, com leitura de fragmentos de obras na Feira do Livro. Presidente da academia e escritora, Marilice Costi recorda que os homens debochavam — e alguns ainda debocham — da iniciativa de criar a ALFRS.
— Existe ainda essa dificuldade em aceitar, dar espaço e voz maior às mulheres escritoras — ressalta.
Apesar disso, as mulheres resistiram e já lutam há 80 anos para manter a academia.
— Vejo a mulher se empoderando há vários anos. Eu tenho 70, então acompanho desde o início essa luta das mulheres pelo seu espaço cultural, e vejo a mulher muito ativa, expondo suas capacidades na escrita e fazendo materiais primorosos — destaca.
Além disso, três gaúchas estarão autografando O Livro das Mulheres de Negócio, escrito por 14 mulheres brasileiras, nesta quarta-feira (1º), às 19h. As empreendedoras se uniram visando gerar impacto com suas histórias no mercado imobiliário e no mundo dos negócios — espaços ainda "extremamente masculinos", como aponta Paula Vargas, 42, corretora e gestora da Re/max Trend.
— A gente percebe que isso ajuda muito, em especial para elevar também a autoestima das mulheres e fazer elas acreditarem na sua capacidade de conseguir conciliar toda a rotina, família, filhos e carreira — relata.
A corretora, que também é psicóloga, percebe que, muitas vezes, as pessoas não acreditam ser possível conciliar esses diferentes papéis. No entanto, Paula atribui essa falta de convicção não tanto ao meio em que a mulher vive, mas, em alguns casos, ao próprio feminino e à autopercepção.
— As outras habilidades que a gente desenvolve nas outras áreas da vida, em especial na maternidade, que é o meu caso, eu vejo que nos fortalecem muito, então buscamos falar sobre isso e mostrar para as mulheres que realmente é possível e a gente pode ganhar posição de destaque no mercado — resume.