Prestes a completar a marca de 70 edições ininterruptas no próximo ano, a Feira do Livro de Porto Alegre enfrenta o desafio de persistir pelas próximas décadas como um dos maiores eventos culturais do Rio Grande do Sul. Para isso, precisará tornar-se atrativa para gerações fisgadas pelos encantos do mundo digital e driblar os descontos impraticáveis do comércio online de livros.
Comparando com os tempos mais gloriosos, quando houve até 160 bancas na Praça da Alfândega e a área infantil se espalhava pelo Cais Mauá, a realidade atual é de um evento mais enxuto. A diminuição se deu tanto nas vendas quanto na participação de livrarias e editoras. Em 15 anos, o comércio de livros teve queda de 38,73%, enquanto o número de barracas reduziu 40,4%, passando de 121, em 2007, para 72, em 2022.
A partir de 2015, a curva de livros comercializados passou a cair de forma expressiva, com algumas oscilações. Em 2020, a chegada da pandemia acelerou a digitalização da sociedade e obrigou a Feira a fazer aquela que foi sua primeira edição virtual, sem divulgação de balanço. Houve uma leve recuperação em 2022, com a retomada completa da Praça da Alfândega, tradicional espaço do evento, e o melhor número de vendas desde 2016.
Em seu segundo e último mandato à frente da Câmara Rio-grandense do Livro (CRL), associação que organiza a feira desde 1963, Maximiliano Ledur reconhece que o evento vem minguando e que a competição com as gigantes do e-commerce é desleal para livrarias e editoras que arcam com os gastos para manter estruturas físicas.
Por outro lado, Ledur entende que o potencial de uma festa literária como essa não pode ser medido somente pelo número de livros que o público leva para casa. Tida como uma das realizações mais antigas e democráticas da área na América Latina, a Feira do Livro de Porto Alegre oferece vasta programação cultural totalmente gratuita e destinada a aproximar leitores de escritores, movimentando o Centro Histórico da cidade com pessoas de diferentes perfis socioeconômicos.
— Talvez a quantidade de livros vendidos diminua (nos próximos anos), porque não podemos brigar com as mudanças tecnológicas, e é fato que a tecnologia vai diminuir o consumo do impresso. É claro que nos assustamos com as mudanças, mas precisamos analisar a parte cultural da Feira. Ainda há pessoas que gostam de ler o livro impresso. E, na Feira, podemos falar com o consumidor de forma mais próxima — diz Ledur.
Um dos maiores nomes da literatura contemporânea e patrono da feira em 1997, na 43ª edição, Luiz Antonio de Assis Brasil é pessimista em relação aos rumos que o evento vem tomando. Vê na diminuição da estrutura e das vendas o resultado de um descaso geral da população com arte e cultura e de um "pensamento tacanho que afeta todo o Rio Grande do Sul":
— Estamos asfixiando a Feira do Livro de Porto Alegre, fazendo com que desapareça. A Câmara Rio-grandense do Livro faz o que pode. Assim que uma edição termina, já começam a trabalhar no evento do ano seguinte, e todo ano é a mesma agonia para conseguir levantar fundos para a próxima edição. Isso é significativo de tudo o que está acontecendo neste Estado. Tudo o que podemos fazer é pobre, é modesto. As nossas condições são mínimas. Enxergo isso com tristeza. Se não nos alertarmos, a Feira vai diminuir até se extinguir. Enquanto isso, outros Estados lançam projetos ambiciosos, realizam eventos gigantescos.
Lutar para que um evento literário dessa estatura consiga financiamento é encarado com frustração pelos realizadores. Orçada originalmente em R$ 3,9 milhões, a edição deste ano quase ficou sem aproximadamente R$ 900 mil devido a uma alteração nos critérios de desempate estipulados pelo Conselho Estadual de Cultura para avaliar projetos que concorriam por aprovação na Lei de Incentivo à Cultura (LIC-RS). Apesar de ter atingido nota máxima, a Feira foi deixada de fora dos beneficiados com o mecanismo (que permite patrocínio com renúncia fiscal do ICMS) para que fossem contemplados municípios que menos receberam recursos nos últimos 12 meses.
O montante que deixou de entrar pela LIC-RS chegou após mobilização e interferência emergencial do governo do Estado, da prefeitura, da Câmara de Vereadores e de doações privadas. Para impedir que esse sufoco aconteça novamente com eventos tradicionais, o Piratini elaborou uma proposta que já tramita na Assembleia Legislativa com o objetivo de contratar pareceristas técnicos destinados à avaliação dos projetos culturais.
Se não nos alertarmos, a Feira vai diminuir até se extinguir. Enquanto isso, outros Estados lançam projetos ambiciosos.
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL
ESCRITOR
— Com essa proposta do governo do Estado, a avaliação dos projetos deixa de ser atribuição do Conselho Estadual de Cultura, que desde os anos 1990 vem sendo soterrado por demandas pela LIC-RS, e passa a ser de pareceristas da Secretaria de Estado da Cultura contratados por meio de concurso público — frisa Benhur Bortolotto, diretor do Departamento de Livro, Leitura e Literatura da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac).
Para Bortolotto, a sustentabilidade de feiras que promovem a literatura também depende de políticas públicas que fortaleçam a cadeia do livro e incentivem a leitura ao longo de todo o ano, formando cidadãos habituados a adquirir obras literárias.
— Dois terços das crianças do Estado não abrem um livro fora da escola. Essa é uma realidade que nós temos de encarar. Não adianta fomentar a produção de livros se não houver quem leia. Outro ponto: não existe política pública de aquisição e renovação de acervos nas bibliotecas públicas. Nos Estados Unidos, por exemplo, as bibliotecas públicas adquirem boa parte da produção das editoras, e isso não acontece aqui. São desafios que precisamos assumir.
Proprietário da L&PM, uma das maiores editoras gaúchas e uma das mais antigas a participar da Feira, Ivan Pinheiro Machado descarta o argumento de que os descontos atraentes oferecidos na internet ou mesmo a praticidade de kindles e e-books sejam ameaças aos eventos que promovem o livro e às obras no formato impresso. Testemunha do sucesso da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro neste ano, que chegou a 40ª edição batendo o recorde de 5,5 milhões de títulos vendidos, garante que sua editora, nascida em 1974, segue tendo lucros em feiras literárias, incluindo a de Porto Alegre.
— Tanto a Bienal de São Paulo quanto a do Rio demonstram que o livro não morreu, que essa história de kindle é conversa fiada. A L&PM vendeu cerca de 10 mil títulos na Bienal do Livro do Rio, e no ano passado batemos todos os recordes da história da L&PM na Feira do Livro de Porto Alegre. Temos mil títulos em e-book à disposição na Amazon e em outros sites, e ainda assim a venda desses livros digitais não chega nem a 3% do faturamento da editora. Não é significativo — diz.
Tanto a Bienal de São Paulo quanto a do Rio demonstram que o livro não morreu, que essa história de kindle é conversa fiada.
IVAN PINHEIRO MACHADO
Proprietário da L&PM Editores
Mais recente sócia da Câmara Rio-grandense do Livro, a editora Zouk, administrada pelo casal João e Karina Xavier, também teve êxito na edição passada da Feira porto-alegrense. Em sua estreia na Praça da Alfândega, vendeu em torno de 1,7 mil exemplares. Experientes em participar tanto de feiras nichadas como a da Universidade de São Paulo (USP) e a da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que ocorrem nos campi dessas instituições, e de feiras incensadas como a novata A Feira do Livro de São Paulo, organizada há dois anos pela revista literária Quatro Cinco Um, eles tecem elogios ao evento gaúcho por seu perfil popular e de fácil acesso à população.
— Em São Paulo, lançaram A Feira do Livro nos mesmos moldes da Feira de Porto Alegre e da Feira do Livro de Lisboa. Só que parece que em São Paulo eles fazem mais propaganda. E a Feira do Livro de Porto Alegre, que é super charmosa e tradicional, talvez não seja reconhecida como deveria — considera João, gaúcho de Ijuí.
Karina, que é de São Paulo e trabalhou em uma das maiores redes de livrarias do Brasil, diz que a sociedade precisa mudar o conceito que se tem sobre o preço de um livro. Na Praça da Alfândega, as bancas expositoras dão desconto mínimo de 10%, algo acordado com a Câmara Rio-grandense do Livro, mas no passado já foi de 20%.
— As pessoas gastam R$ 40 para comer e beber fora, mas não querem pagar o mesmo valor por um livro. Se dermos muito desconto para os clientes, nosso negócio desvaloriza demais —diz.
Criada em 1983 e com quase 30 anos a menos que a Feira de Porto Alegre, a Bienal do Livro do Rio tem a experiência de só aumentar com o passar do tempo. Com cobrança de ingresso e organizada em parceria entre o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e a empresa de eventos GL Eventos, virou um festival de cultura e entretenimento – inclusive, deixou de ser referida como "feira do livro" para assumir um conceito que vai além da literatura. Martha Ribas, uma das curadoras e consultoras da Bienal, diz que o livro impresso acabou virando ponto de partida para outros tipos de desfrute e entretenimento durante o evento.
— Praticamente todos os dias tivemos a presença de influenciadores literários, os booktokers. Fizemos um baile de época com a escritora americana Julia Quinn, autora da série de livros Os Bridgertons, sucesso literário que deu origem à produção da Netflix. Nossa área infantil é uma experiência imersiva nas histórias, e não simplesmente um encontro com os escritores. Mas também tivemos uma mesa-redonda lotada com os imortais da Academia Brasileira de Letras. Estamos abertos ao novo sem nunca esquecer do nosso astro maior, que é o livro. O mundo está mudando. A gente precisa entender a nova geração. Não temos medo de tela. Temos que incorporar as novas tecnologias — afirma.
A gente precisa entender a nova geração. Não temos medo de tela. Temos que incorporar as novas tecnologias
MARTHA RIBAS
Curadora e consultora da Bienal do Livro do Rio
Outro incentivo à compra de livros são os vale-livros que a Bienal do Rio oferece a escolas e a funcionários de bibliotecas públicas para a renovação dos acervos, algo somente possível por meio de convênios com as secretarias de Educação. Ledur queria implementar a ideia na edição deste ano da Feira de Porto Alegre, mas não conseguiu tirar do papel.
— A Feira do Livro de Porto Alegre traz em torno 550 turmas de escolas públicas do Estado. Pagamos transporte e bate-papo com autores de livros que os alunos leram durante o ano. Tudo isso para incentivar a leitura desde a infância. Depois, quando o aluno já tiver o hábito de ler, ele poderá escolher a leitura, por isso é importante a ideia do vale-livro. Mas ano que vem tentaremos fazer esse trabalho novamente, mesmo com outro nome na presidência da Câmara.