Daniel Galera reconhece que ao lançar Barba Ensopada de Sangue, em outubro de 2012, obteve o alicerce de sua bibliografia. O paulista radicado em Porto Alegre dispôs um dos livros mais aclamados da literatura brasileira contemporânea. Há quem o classifique como clássico instantâneo.
Celebrando 10 anos da obra, que ganhou em 2013 o Prêmio São Paulo de Literatura, a editora Companhia das Letras lança uma edição especial, já à venda. Com capa dura e novo projeto gráfico, o livro traz apresentação da escritora Carol Bensimon e posfácio do historiador Júlio Pimentel, além de considerações finais do autor.
Além da edição comemorativa, Barba Ensopada de Sangue também deve ganhar vida no cinema. O livro está sendo adaptado pela direção de Aly Muritiba (Deserto Particular e Ferrugem), com Gabriel Leone interpretando o protagonista sem nome. Em vez de Garopaba (SC), onde se passa o romance, o litoral sul de São Paulo abrigou as filmagens, que foram finalizadas no começo desta semana. Ainda não há previsão para a estreia do longa. Os direitos do livro foram vendidos desde o seu lançamento original, mas a produção empacou durante anos, até Muritiba assumir o projeto. No processo de elaboração do roteiro, Galera participou como consultor. Para ele, a adaptação é promissora:
— Embora seja diferente do romance em muitos aspectos, como é inevitável numa adaptação de um livro, acho que eles estão construindo algo empolgante. Tenho alta expectativa. Os fãs do livro, provavelmente, vão gostar.
Barba Ensopada de Sangue é o quarto romance de Galera, sucedendo Cordilheira (2008), Mãos de Cavalo (2006) e Até o Dia em que o Cão Morreu (2003). A formação inicial do livro surgiu a partir de três ideias do escritor. A primeira foi trabalhar com um protagonista que sofresse de prosopagnosia — distúrbio neurológico em que a pessoa é incapaz de assimilar rostos após vê-los, mesmo com conhecidos. A enfermidade acaba sendo decisiva para moldar o personagem emocionalmente. Por conta dessa dificuldade em reconhecer as pessoas, ele se torna introvertido e fechado.
A segunda motivação para o romance partiu de uma antiga história que o pai de Galera lhe contou sobre um assassinato em Garopaba, que teria ocorrido na década de 1970. Durante um baile, as luzes foram apagadas e um homem foi esfaqueado. Conforme o rumor, a vítima era alguém que causava problemas por ali, então ele supostamente teria sido atacado por mais de uma pessoa. Quando a polícia investigou, ninguém sabia de nada. Foi uma espécie de justiçamento de comunidade, que foi incluído na narrativa: o protagonista investiga o que aconteceu com Gaudério, o seu avô, morto nas mesmas circunstâncias descritas na história que o autor ouviu. Porém, os nativos são lacônicos ao rememorar o episódio para o protagonista.
Os dois elementos somaram-se à experiência de Galera ao viver em uma cidade pequena, onde não conhecia ninguém. Foi o que ele buscou para si: morou em Garopaba de julho de 2008 até o final do ano seguinte. Voltou a Porto Alegre com o primeiro capítulo pronto. Entre 2010 e 2011, trabalhou no romance. Outros interesses do escritor à época entraram na história:
— Um dos motivos para eu ter escolhido viver em Garopaba foi a possibilidade de estar junto ao mar, poder nadar ao longo de um ano inteiro. O fato de o protagonista ser um professor de educação física, muito envolvido com natação e com uma relação significativa com o mar, acho que também é uma projeção de uma paixão pessoal — explica.
Na narrativa, há um protagonista sem nome que busca isolamento e um recomeço de vida em Garopaba. Ele ainda está assimilando a morte do pai e o fim de um relacionamento, além de uma tensão familiar. Sua companheira é Beta, cachorra que acompanhava seu pai. Aliás, ela é uma personagem com uma verve psicológica cativante.
Enquanto trabalha como instrutor de natação, o professor faz amizades e entra em relacionamentos, mas encontra um ambiente hostil toda vez que indaga sobre o avô. O que seria uma busca pela compreensão do antepassado acaba também sendo uma busca de si. A aparência dele fica cada vez mais parecida com a de Gaudério, o que causa incômodo aos nativos que o conheceram.
Barba Ensopada de Sangue se destaca por sua narrativa fluida, com diálogos ágeis e descrições primorosas. Ao mesmo tempo, alimenta um clima de suspense crescente e proporciona sensações desconcertantes — em especial, pela introspecção do protagonista e sua luta com a prosopagnosia.
Ao reler a obra recentemente, Galera percebeu que, embora Barba Ensopada de Sangue possa parecer datado em um ou outro aspecto, trata-se de um registro do momento em que o livro foi escrito. Sente que ainda operam plenamente todos os mecanismos internos da narrativa, todas as ligações entre os detalhes, tudo que foi construído com tanto esforço de forma meticulosa.
— O livro ainda é o que eu achava que era quando escrevi. Sinto que todas essas coisas funcionam, que o edifício permanece firme e em pé — avalia Galera. — Fico feliz que Barba... siga encontrando novos leitores. Todo mês vende um pouquinho, sempre constante. Possivelmente as pessoas o recomendam umas às outras. Ainda tem o poder de encantar e instigar em ser lido.
Entrevista com Daniel Galera
O protagonista de Barba Ensopada de Sangue é um professor de educação física introspectivo e deslocado, que lida com uma doença que o faz se esquecer dos rostos, vive um momento doloroso e está em uma jornada de busca. De que maneira você procurou moldá-lo?
O protagonista reúne coisas pessoais e não pessoais. Tem algumas tendências minhas, como a introspecção e, pelo menos naquela época, um desejo de estar em uma situação de solidão, que no personagem está ampliado. Era uma projeção dessa existência solitária em uma lugar onde ele não conhecia ninguém. Era uma coisa de forma mais branda comigo, mas que no ato de escrever ficção nós levamos ao extremo, buscando reviravoltas possíveis e o que possa ser interessante para narrar. Há ideias sobre o budismo em que eu estava interessado, e o protagonista absorve um pouco isso. Também alguns livros de filosofia que tratavam bastante do determinismo. Essa ideia de que tudo que acontece precisa acontecer, porque é um resultado necessário do que aconteceu logo antes. Esse materialismo determinista era algo em que eu estava interessado e investigando na época. Aquilo tinha bastante sentido para mim naquele período. Esse personagem absorve bastante isso. Pelo fato de ter prosopagnosia, ele é uma pessoa que precisa ficar mais atenta aos detalhes e aos pormenores daquilo que observa na esperança de identificar as pessoas que conhece. Devido a essa capacidade de absorver detalhes do mundo ser maior do que a das pessoas comuns, o protagonista se torna uma pessoa para quem o futuro é um pouco previsível. Como o mundo seria determinista, ele consegue vislumbrar o futuro com base na informação que ele tem do presente.
Imagino que você tenha ouvido muito isso ao longo de 10 anos, mas a cachorra Beta é uma personagem incrivelmente carismática. O que você queria que ela representasse?
Bem no início, minha ideia não era que o cachorro permanecesse na história. Ia sair de cena em algum momento. Mas a Beta foi ficando. Em algum momento decidi que o protagonista ficaria com ela. E eu precisava que ela fizesse parte da história. Outra coisa que influenciou foi o livro A Travessia, de Cormac McCarthy, que tem uma jornada com a loba. A cachorra para ele representa o pai, como se ele estivesse vivo. O protagonista acaba criando um vínculo com Beta, e a minha ideia era criar no leitor a sensação de que esse homem estaria disposto a fazer qualquer coisa para a sobrevivência ou o bem-estar dela. Também simboliza a alternância de ternura e violência que o romance procura estabelecer. O cachorro é, ao mesmo tempo, um emblema de aliança e ternura, mas ao mesmo tempo é o centro de cenas de muita violência do protagonista. Ele vai dar o próximo passo para protegê-la, mesmo que lhe custe a vida.
Algumas questões ambientais aparecem na história, como a pesca industrial desenfreada e a urbanização sem controle. Aliás, Carol Bensimon comenta sobre isso na apresentação da nova edição. Mais tarde, esses problemas ecológicos apareceriam de forma decisiva em O Deus das Avencas.Você sente que, de certa forma, Barba Ensopada de Sangue reflete uma catástrofe anunciada?
Acho que as pessoas que frequentam o litoral sempre sentiram essa sensação de destruição lenta e gradual, mas aparentemente irrefreável. Desde muito jovem, quando ia veranear na região, me chateava muito a maneira como ocorria a urbanização e a ocupação desses morros e dessas praias. Isso não é novidade, acontece há décadas, mas na época que escrevi o livro tive um contato mais próximo. Vemos casas que são erguidas em locais proibidos, pedaços de morros que são queimados, derrubados e desmatados para abrir estradas de terra e criar alojamentos em locais proibidos. Quando morei lá, começava a haver uma consciência maior dessa virada de que cenários naturais estavam sofrendo uma ameaça muito grande de ficarem irreversivelmente danificados, em termos de poluição das praias, da lagoa, de destruição da fauna e da flora local. Acabou entrando no romance porque era algo que me preocupava, mas só como um dado a mais no espaço e na vida de Garopaba. Se fosse escrito hoje, talvez entrasse de maneira mais saliente na narrativa, como uma questão com maior importâcia na história.
Há uma passagem sobre as eleições municipais em que há muita tensão e violência. É inevitável não se lembrar das eleições presidenciais deste ano. Você vê essa passagem como uma moldura involuntária do que estaria por vir? Ou seria um retrato de uma cena corriqueira?
Algo que sempre houve. Uma reprodução mimética de uma dinâmica de tempos de eleição, que faz parte da normalidade desse período. Foi durante o segundo mandato do Lula, quando havia uma estabilidade política e econômica como poucas vezes havia se visto no país e não se veio a ver mais desde então. É interessante pensarmos o quanto o que está ali não é um emblema de uma crise que viria depois, mas sim uma situação de normalidade do que são as distorções e perversões de um processo político, mas ocorrendo em um período de estabilidade política.
BARBA ENSOPADA DE SANGUE (EDIÇÃO ESPECIAL DE 10 ANOS)
- Editora: Companhia das Letras
- Páginas: 456
- Preços: R$ 99,90 (livro impresso) e R$ 44,90 (e-book)