Um romance envolvendo traumas, depressão e pós-fascismo. Que apresenta discussões opondo metafísica e ciência. Uma obra permeando fantasmas da Segunda Guerra Mundial e o desenvolvimento das primeiras drogas contra doenças psíquicas. Ao listar alguns tópicos de Uma Tristeza Infinita, novo livro do escritor e tradutor porto-alegrense Antônio Xerxenesky, parece que a obra abraça o mundo. Só que todos esses temas fluem categoricamente em uma narrativa introspectiva, mas sedutora desde as primeiras páginas.
Uma Tristeza Infinita é um romance denso e, por vezes, carregado na angústia de seu protagonista. Contudo, há uma beleza agridoce na história, um sentimento de transcendência mesmo na melancolia.
A narrativa se passa em 1952, em um mundo que ainda reverbera as consequências da Segunda Guerra Mundial, e é centrada em Nicolas. Ele é um psiquiatra francês convidado para trabalhar em um pequeno vilarejo, na Suíça, onde há um hospital psiquiátrico conhecido por utilizar métodos humanizados para tratar seus pacientes.
É nesse contexto que surge a clorpromazina, antipsicótico aplicado no tratamento de pacientes esquizofrênicos. O fármaco demonstra ser eficaz com alguns internos do hospital, sendo festejado como um milagre, o que deixa Nicolas em dúvida a respeito de sua própria função.
Ele é casado com Anna, uma jornalista que começa a se interessar cada vez mais pela física e pela ciência, empolgada com as descobertas da época. Ao mesmo tempo, ela passa a perceber que a melancolia está se apossando do marido. Os dois começam a travar diálogos em que, de um lado, ele defende a metafísica e a psicanálise, enquanto ela toma lado do racional e científico.
Conflitos
Xerxenesky conta que os grandes debates entre Nicolas e Anna ele já tinha consigo, até por ter saído de um curso de exatas (Física) para se formar em uma graduação de humanas (Letras).
— São pontos de vistas divergentes, que não chegam a uma síntese. Nenhum deles dá conta de abarcar uma totalidade. Quis colocar várias vozes sem uma resolução, porque não é uma função da literatura trazer respostas — explica.
Aliás, o projeto original do romance já traria essa dualidade entre um personagem de humanas e outro de exatas. Xerxenesky começou a escrita em 2017, em uma residência literária da Fondation Jan Michalski, no vilarejo de Montricher, na Suíça. Era outro livro: seria uma história ambientada em São Paulo, sobre duas pessoas que se descobriam imortais.
Autor de romances como Areia nos Dentes (2008), F (2014) e As Perguntas (2017), o escritor lembra que naquele tempo estava um pouco cansado de cultura pop. Então, sentiu necessidade de reinventar seu estilo.
— Fiquei muito apaixonado pela Suíça. É um país de que ninguém fala bem porque não tem muito o que fazer lá, só tem vaquinhas (risos), mas me apaixonei pelos campos, pelas caminhadas longas. Percebi que não tinha obrigação de escrever uma narrativa fantástica de cultura pop. Posso fazer uma história só daqui, mais próxima dos meus interesses atuais —relata.
Ao longo de Uma Tristeza Infinita, Nicolas começa a ser tomado pela depressão (ainda chamada de melancolia na narrativa). Ele é um protagonista, a princípio, cético que passa por transformações: acumula aflições e culpas do passado, se sente inseguro e apossado pela paranoia no presente e teme pelo futuro. É um personagem que converge questões íntimas com históricas.
— É uma pessoa que tem um verniz de certeza, que tem que ter a figura de autoridade do médico para a sociedade. Mas, por dentro, ele é um amontoado de contradições que vão ficando cada vez mais aparentes. O que norteia o livro é a crise dele, que vai derretendo esse verniz de pessoa que tem as repostas e expõe a vulnerabilidade de um ser humano cheio de dúvidas — diz Xerxenesky.
Pós-fascismo
Embora o romance seja ambientado nos anos 1950, também são apresentados acontecimentos de antes e durante a Segunda Guerra. A narrativa relembra a escalada do nazifascismo, analisando como as pessoas deixaram essa doutrina se introjetar em sua política: "A imensa maioria da população apoiou Hitler e seus correligionários. Claro, ninguém o elegeu para que ele invadisse a Polônia do dia para a noite. Mas todos os seus eleitores sabiam muito bem das posturas racistas e antissemitas de Hitler, afinal, ele nunca tentou escondê-las".
Outro ponto delicado que o livro aborda é a convivência das vítimas com aqueles que apoiaram o regime responsável pelas mortes de seus amigos e familiares – fosse em "balcões de bar, ônibus, filas de banco e calçadas". Essa camada do romance começou a ganhar força a partir das eleições presidenciais de 2018. A intenção de Xerxenesky era usar uma imaginação histórica para encontrar no passado coisas que possam servir para pensar questões do presente. Então, há muitas deixas no livro que são relacionáveis ao Brasil dos últimos anos.
— O que me interessa nesse livro é que ele se passa no pós-fascismo. Viver o trauma, sabendo que você vai ter que conviver com aqueles apoiadores. Que as pessoas estão trabalhando ali na padaria, sentadas ao lado no restaurante. Acho que é importante a gente pensar no Brasil em um pós. Porque um dia isso vai ter que acabar — aponta o autor.