Dentro de uma onda de novos livros que procuram explicar a crescente desestabilização das democracias no mundo, o filósofo norte-americano Jason Stanley acaba de lançar no Brasil, pela L&PM, Como Funciona o Fascismo – A Política do “Nós” e “Eles”. Filho de refugiados europeus da II Guerra Mundial que se estabeleceram nos EUA e neto da atriz Ilse Stanley, que registrou suas memórias do Holocausto, o professor da Universidade Yale alerta os leitores sobre táticas fascistas empregadas por líderes em ascensão no mundo hoje, explicando como manipulam a opinião pública para obter poder em benefício próprio – e não em prol dos valores que alegam defender. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o filósofo explica suas ideias e as relaciona à atualidade do Brasil.
O senhor escreve no livro: “O fascismo hoje pode não ter exatamente a mesma aparência que tinha na década de 1930”. Quais são as diferenças?
Agora, você tem explicitamente uma conexão entre empresas multinacionais, bilionários e oligarcas com essa nova classe de líderes fascistas, enquanto os líderes fascistas arremessam carne vermelha para seus apoiadores: nacionalismo, sexismo, homofobia. Eles não têm a intenção de assumir o gabinete para fazer programas sociais em grande escala. Estão lá apenas para privatizar a economia, reduzir as regulações ambientais e despejar dinheiro para ajudar seus apoiadores oligarcas. Outra diferença é que hoje muitos desses novos movimentos fascistas não estão lá para mobilizar as pessoas a invadir outros países e construir um império. Hitler quis mobilizar o povo para se alistar, quis criar um grande exército para invadir outros países e criar um gigantesco império alemão. Agora, o objetivo é ajudar as empresas multinacionais a enriquecer os próprios líderes fascistas e suas famílias. No passado, eles também queriam fazer isso, mas agora não há o propósito de construir um império. Agora, querem distrair as massas. Querem que as pessoas sejam menos envolvidas politicamente, que apenas fiquem em casa e não se mobilizem de forma alguma.
A democracia liberal traz em si a possibilidade de virar um regime não democrático?
Sim, sempre. Esse é o ponto do meu livro anterior, How Propaganda Works (“Como funciona a propaganda”, em tradução literal, inédito no Brasil). A democracia liberal sempre contém a semente de sua própria destruição. Começo o livro com uma citação de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista. Cito isso também em Como Funciona o Fascismo: “Esta será sempre uma das melhores piadas da democracia, que ela deu a seus inimigos mortais os meios pelos quais foi destruída”. Esse é também o ponto do livro 8 de A República, de Platão. Ele argumenta que a democracia sempre vai levar diretamente à tirania, porque a democracia tem liberdade de expressão, e a liberdade de expressão permitirá que um tirano espalhe mentiras sobre um grupo de pessoas, crie medo e represente a si mesmo como a pessoa que pode solucionar o problema. Quando assume o poder, ele mata a democracia e a transforma em tirania.
A democracia sempre vai levar diretamente à tirania, porque a democracia tem liberdade de expressão, e a liberdade de expressão permitirá que um tirano espalhe mentiras sobre um grupo de pessoas, crie medo e represente a si mesmo como a pessoa que pode solucionar o problema.
JASON STANLEY
Filósofo
Alguns países, por sua história, têm mais probabilidade de cair na ilusão do fascismo?
Sim. Acho que todos os países têm algum risco, mas alguns mais. Há um enorme risco em um país com história de sexismo e machismo e que conecta isso com valores tradicionais. A política do macho, em que o líder forte representa a si mesmo como um homem de verdade e em que há muita simpatia pela homofobia, é um perigo real. Outro risco é a existência de divisão racial, porque o fascismo prospera no senso de hierarquia racial. Também cito países que sofrem escândalos de corrupção, porque campanhas fascistas são sempre anticorrupção, mesmo que os fascistas não sejam realmente anticorrupção. Se você tem um país que acabou de ter um escândalo de corrupção, será especificamente vulnerável ao fascismo. Frequentemente, os políticos fabricam falsos escândalos de corrupção. É por isso que acusações de corrupção são extremamente perigosas. Elas permitem aos políticos fascistas dizerem: “Olhe, a democracia é corrupta. Um líder forte limpará tudo isso”. Claro que esses líderes fortes são os mais corruptos de todos. Putin (Vladimir Putin, presidente da Rússia) fez uma campanha anticorrupção em 2011. Desigualdade é outro grande risco, tudo o que leva as pessoas a ficarem irritadas com a elite urbana. A política fascista dirá que representa a tradição, que vai fazer uma revanche contra a elite urbana. Outro fator de risco é uma onda de crime, porque políticos fascistas sempre fazem campanhas de lei e ordem. Claro que eles não querem realmente dizer “lei e ordem”. Então, diria (que os fatores que predispõem um país a cair em táticas fascistas são) uma cultura de sexismo, uma história de conflito racial, um escândalo recente e muito proeminente de corrupção e uma onda recente de crime.
O senhor já declarou que identifica algumas dessas táticas em Bolsonaro. Poderia comentar?
Não estava sabendo de Bolsonaro quando escrevi meu livro. Fiquei sabendo dele no primeiro turno da eleição brasileira. O que achei alarmante é que muitos apoiadores de Bolsonaro são explicitamente antidemocráticos. O capítulo 1 do meu livro chama-se O Passado Mítico. O líder tenta olhar para o passado e representa o passado como um tempo melhor. O passado mítico de Bolsonaro é a ditadura militar. Isso é terrível. Ele a está reinventando completamente.
Os fatores que predispõem um país a cair em táticas fascistas são uma cultura de sexismo, uma história de conflito racial, um escândalo recente e muito proeminente de corrupção e uma onda recente de crime.
JASON STANLEY
Filósofo
O quanto o senhor está preocupado com a situação no Brasil?
Estou tão preocupado quanto posso estar, e por isso estou tão envolvido com a política brasileira nas últimas semanas. O Brasil é um grande país, um dos mais importantes no mundo. E tem de ser uma democracia. Estou preocupado com a Amazônia, com o ambiente. Vejo empresas multinacionais por trás de Bolsonaro e vejo que a agenda delas é eliminar as regulações ambientais e promover políticas que vão destruir a Amazônia e prejudicar o ambiente mundial.
Steve Bannon, o ideólogo de Trump, costuma dizer que é preciso “separar o sinal do ruído”. No Brasil, Bolsonaro utilizou esse recurso de criar ruído: alguém ligado a ele faz uma declaração pública e depois outro desmente o que foi dito. Isso cria uma sensação de não se saber o que é verdade. Como o senhor analisa isso?
Como o objetivo de regimes fascistas frequentemente é serem mais corruptos e roubarem e enriquecerem a si mesmos, eles querem destruir qualquer confiança no jornalismo investigativo. Trump disse repetidas vezes: “Quero que todo mundo pense que a mídia está mentindo para que ninguém confie no que diz sobre mim”. Fascismo é poder. E o oposto de poder é verdade. A democracia liberal se baseia na verdade. Então, o fascismo deve destruir a verdade. Os dois valores da democracia liberal são liberdade e igualdade, e ambos dependem da verdade. Igualdade significa falar a verdade sobre o poder. Uma cultura democrática é aquela em que se diz “você está mentindo” e isso prejudica o político. O político precisa destruir isso para não ser prejudicado. Para destruir a democracia e destruir a igualdade, você precisa destruir o respeito das pessoas pela verdade. Quando as pessoas não têm mais senso da realidade, elas olham apenas para quem é o mais poderoso. Você precisa destruir a verdade para que o poder seja tudo o que resta. E fascismo é uma ideologia completamente baseada em poder. Todos os elementos fascistas, do passado mítico à hierarquia e às divisões raciais, dependem do esmagamento da verdade. Então, você precisa de uma estratégia para que as pessoas percam o chão da realidade. Passa a haver uma mentira aberta e constante. Quando os líderes mentem aberta e obviamente, eles estão demonstrando seu poder. Mostram que têm poder sobre a própria realidade, que podem mentir e se safar. Outros políticos mentem, mas, se a mídia diz que é mentira, isso maculará sua reputação. Já o líder fascista mente abertamente e mostra que pode se safar. E não apenas se safar. O líder fascista mente e consegue fazer com que a mídia preste atenção a sua mentira. E ainda se safa. Isso mostra que ele tem enorme poder e pode controlar a atenção do país. Então, todos têm seus olhos voltados para ele o tempo todo. Ele pode mentir abertamente e não sofrer qualquer dano à sua reputação. Na verdade, a maneira de lidar com o político fascista é ignorá-lo, mas isso não é possível quando o político fascista é o presidente.
É alarmante que muitos apoiadores de Bolsonaro são explicitamente antidemocráticos. O capítulo 1 do meu livro chama-se 'O Passado Mítico'. O líder tenta olhar para o passado e representa o passado como um tempo melhor. O passado mítico de Bolsonaro é a ditadura militar. Isso é terrível. Ele a está reinventando completamente.
JASON STANLEY
Filósofo
Como o senhor vê a cobertura do governo Trump pela imprensa norte-americana?
É horrível, um desastre. Fundamentalmente, o problema é que a mídia nos EUA é de empreendimentos guiados pelo lucro. A mídia não deveria ser orientada pelo lucro. Deveria ser guiada pela verdade. Então, ela anda de escândalo em escândalo, de polêmica em polêmica, e cai direitinho na armadilha fascista de prestar atenção constantemente na pessoa que atrai a maior atenção. A CNN e o New York Times ganharam muito dinheiro com isso. Os líderes fascistas estão mostrando que podem direcionar a mídia, que são o centro de toda a atenção. Há uma simbiose entre a mídia e o líder fascista quando a mídia é guiada pelo lucro.
A CNN e o New York Times podem ter obtido lucro por que estão mostrando os fatos por trás das mentiras presidenciais?
É uma questão muito complicada. Se o presidente mente abertamente, de forma ousada, você não precisa de muito esforço para mostrar que ele está mentindo. Minha preocupação é baseada na “checagem de fatos” do presidente. Você está fazendo o fato parecer partidário. O jogo que o presidente está jogando não é o jogo da verdade, é o jogo da atenção. Ele quer dominar as notícias. É isso o que seus apoiadores gostam. Em países que fizeram a transição para o fascismo, como a Rússia de Putin, o líder fascista vai mentir abertamente, e isso será muito popular.
Existe alguma forma de a sociedade acordar para as táticas fascistas?
A história conta que os líderes fascistas são invariavelmente ruins para seu país. Os apoiadores seguirão o líder fascista em seu caminho, mesmo que as coisas fiquem materialmente piores para eles. Mas acho que o jornalismo investigativo é muito importante. Se os repórteres investigativos puderem mostrar que os líderes fascistas estão realmente fazendo o que estão fazendo e dizendo o que estão dizendo apenas para seu proveito individual e para ter dinheiro para si mesmos, isso pode funcionar. O jornalismo investigativo deveria mostrar a ligação com as empresas multinacionais, que a corrupção está completamente ao lado do fascista.
Como pode haver tanta notícia falsa neste momento repleto de ferramentas de comunicação?
O objetivo do fascismo, como discutimos antes, é destruir nosso respeito pela verdade, destruir nosso senso de realidade. É nos fazer pensar que há apenas ruído e que devemos escolher um lado. Um modo de fazer isso é convencer as pessoas de que há uma realidade alternativa. Mas a Rússia descobriu que você pode apenas sobrecarregar as pessoas com informação. Você sobrecarrega o espaço da informação com teorias da conspiração, com boatos e possibilidades. Há tanta coisa diferente no espaço da informação que as pessoas desistem de tentar descobrir o que é confiável. Você pode fazer isso não convencendo as pessoas de uma história falsa, mas cobrindo o espaço da informação com todo tipo de estranhas possibilidades e teorias da conspiração. Quando você faz isso, as pessoas não conseguem mais acompanhar o que é verdade. A pessoa diz: “Ok, vou apenas escolher no que quero acreditar”.
Outra tática que o senhor descreve no livro é o anti-intelectualismo. No Brasil, estamos vendo muitos ataques a professores, que são chamados de...
...Marxistas culturais, teoria de gênero. Vocês estão vendo o mesmo ataque à universidade do Leste Europeu. Vocês estão vendo os ataques a intelectuais judeus que vimos nos anos 1930. Vocês estão recebendo todos os clichês húngaros e russos. Que as universidades estão se tornando centros de doutrinação, de marxismo cultural... Isso (o ataque à universidade) é um sinal invariável de fascismo. Porque a investigação crítica e o questionamento virão justamente das universidades.
É como se houvesse um grupo malévolo de pessoas que está tentando arruinar os valores tradicionais de suas crianças, e isso explicaria por que o mundo está repleto de ameaças escondidas. Mas, na verdade, as ameaças escondidas estão vindo das pessoas que dizem isso a você.
JASON STANLEY
Filósofo
Por que esse discurso anti-intelectual seduz?
Todo o quadro por trás disso é sedutor. Que os valores tradicionais estão ameaçados, que o lugar tradicional do homem está ameaçado. É uma teoria da conspiração paranoica. E essas teorias se ajustam ao senso de ansiedade e medo das pessoas, o sentimento geral de que elas não entendem o mundo. Então, é como se houvesse um grupo malévolo de pessoas que está tentando arruinar os valores tradicionais de suas crianças, e isso explicaria por que o mundo está repleto de ameaças escondidas. Mas, na verdade, as ameaças escondidas estão vindo das pessoas que dizem isso a você, as pessoas que estão tentando vender o seu país para empresas multinacionais lucrarem. E quem está alertando as pessoas para o capitalismo e para os perigos das empresas multinacionais? As pessoas nas universidades.
No livro, o senhor cita a incitação da ansiedade sexual como uma tática fascista. Pode explicar a relação entre sexualidade e política?
A família patriarcal está representada por um certo ideal fascista em que o pai tem autoridade e dominância pela virtude de seu poder e a mulher exerce um papel de gênero tradicional e submisso. O líder fascista representa a figura do pai. Quando Kanye West foi falar com Trump, ele disse que Trump parecia o pai que ele nunca teve. Muitos disseram que Kanye é um estúpido, mas considerei o comentário dele muito astuto, inteligente, pois é o que Trump está tentando ser. Ele está tentando ser o pai patriarcal macho protegendo suas mulheres e seus filhos. O que o fascismo faz é pegar a ansiedade econômica das pessoas, o medo da pobreza e o medo do futuro e dizer a elas: “Esse medo é na verdade sobre a perda da família tradicional. Não tem nada a ver com a economia, nada a ver com o seu medo de não ter o que comer ou de perder seu emprego”. Assim, as pessoas não prestam atenção na economia, e eles focam em coisas como homossexualidade. Nos EUA, você representa americanos negros ou imigrantes da América do Sul e Central como ameaças de estupro, e isso se encaixa no senso de que você precisa de um líder poderoso para proteger você de estupradores.
Os líderes fascistas, ao longo da história, sempre são acusados de discurso de ódio e usam essa acusação para representar a si mesmos como heroicos, como se estivessem falando a verdade proibida. Ele se associam à liberdade de expressão para se fazerem de mártires dela.
JASON STANLEY
Filósofo
O discurso extremista deve ter lugar na arena pública? Como lidar com a demanda por liberdade de expressão da parte de quem espalha ódio e preconceito?
Esse é o ponto da citação de Goebbels que mencionei antes. Ele estava falando sobre liberdade de expressão. É também o ponto de Platão: essa é a fraqueza interna da democracia, a liberdade de expressão. Então, as pessoas dizem: “Não há democracia se não houver total liberdade de expressão”. Mas, assim que há total liberdade de expressão, você se abre para o fascismo e para a destruição da democracia. O que o fascista faz? Ele defende a total liberdade de expressão, representando a si mesmo como um mártir pela liberdade de expressão. Os líderes fascistas, ao longo da história, sempre são acusados de discurso de ódio e usam essa acusação para representar a si mesmos como heroicos, como se estivessem falando a verdade proibida. Ele se associam à liberdade de expressão para se fazerem de mártires dela. Você viola as leis do discurso de ódio, você se enrola na faixa da liberdade de expressão e vira um mártir da liberdade de expressão. Então, você é um herói democrático. Aí você acaba com a democracia, incluindo a liberdade de expressão.
O senhor conta, no livro, que procura não transmitir aos seus filhos o pessimismo de seus pais, que se refugiaram nos EUA do antissemitismo europeu. O senhor se considera um otimista, um pessimista ou nenhum dos dois?
Na história, as coisas podem piorar rapidamente. Você pode ter uma falha econômica, e as pessoas podem responder a isso elegendo um fascista. Pode resultar em assassinato em massa. Meus pais, como sobreviventes do Holocausto, tinham consciência disso. Eles sabiam que nenhum país está livre. Acho que a democracia é difícil, mas a história nos mostra que há pessoas heroicas que se prontificam frente à mais extrema circunstância para defender a verdade. Então, defendo pessimismo do intelecto e otimismo da vontade (risos).