Foi uma carreira exitosa: em seus 70 anos de vida, o escritor gaúcho João Gilberto Noll acumulou cinco prêmios Jabuti, publicou 19 livros entre contos e romances, foi traduzido para dezenas de línguas e adaptado para o cinema e teatro. Foi uma carreira que não teve o reconhecimento que merecia: Noll morreu sendo cultuado por um pequeno círculo de admiradores, mas sem atingir as massas de leitores que deveria alcançar. É o que aponta o jornalista e escritor Flávio Ilha, autor da biografia João aos Pedaços. O livro foi lançado no domingo (16), em live no FestiPoa Literária.
Noll nasceu em Porto Alegre, em 15 de abril de 1946. Ele morreu em março de 2017, vítima de um mal súbito. Ao longo de sua trajetória, lançou obras como A Céu Aberto, Harmada, Hotel Atlântico, Acenos e Afagos e Berkeley em Bellagio, que seriam premiadas e elogiadas pela crítica por sua prosa inquietante. Noll realizava um trabalho singular com a linguagem, projetando uma atmosfera de angústia e poesia em temáticas como solidão, sexo e gênero. Às vezes suas histórias eram classificadas como nonsense por não seguirem uma linearidade ou coerência, causando uma estranheza. Há quem diga que era difícil ficar indiferente a um livro de Noll. Suas experiências pessoais eram refletidas nas tramas e, muitas vezes, a Capital gaúcha era cenário de suas histórias.
Autor de obras como Longe Daqui, Aqui Mesmo (2018) e Ralé (2019) e proprietário da Diadorim Editora ao lado de Denise Nunes, Flávio começou a admirar Noll já pelo livro de estreia. A partir do volume de contos O Cego e a Dançarina, lançado em 1980, ele passou a acompanhar a carreira do escritor. A aproximação com Noll teve início em meados dos anos 2000, enquanto trabalhava como editor da revista Aplauso. Foi ali, entre publicações dos textos do escritor e troca de e-mails, que Flávio começou a perceber uma personalidade complexa, mas também fascinante.
Em 2016, Flávio cursou uma das oficinas de Noll na Livraria Baleia, no espaço Aldeia. Ali, os dois se tornaram amigos. O jornalista começou a pensar na possibilidade de fazer um documentário com Noll, em que ele caminhava pelas ruas de Porto Alegre que ambientaram alguns de seus livros. O escritor ficou entusiasmado com a ideia, chegou a selecionar alguns textos, mas partiu antes de qualquer filmagem.
Flávio adaptou o projeto de documentário para uma biografia. Partiu para entrevistar pessoas próximas a Noll, entre familiares e amigos. Teve acesso a cartas, e-mails, fotos, manuscritos, entre outros documentos do escritor que são apresentados no livro.
João aos Pedaços remonta a trajetória de Noll em fragmentos: sua infância, adolescência e formação; o período que viveu no Rio de Janeiro; seu processo criativo arrebatador que o colocava em "transe"; seus amores entre homens e mulheres, incluindo sua relação com Caio Fernando de Abreu; seu envolvimento com a organização de Carlos Lamarca — ele colaborou com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) dando apoio logístico a militantes clandestinos —; sua fobia social que o levaria a ser internado em um sanatório por um mês; suas angústias e dificuldades enquanto escritor; seus últimos dias.
Segundo Flávio, ele procurou na biografia desvendar a vida de Noll sem entrar em detalhes pessoais que só interessavam ao escritor.
— É uma homenagem ao Noll. Era um cara que tinha uma vida muito discreta, não gostava muito de badalações. Na medida do possível, tentei preservar sua discrição para que o tributo fosse direcionado à figura dele, a importância dele com artista contemporâneo do Brasil — explica.
O autor lembra que Noll era uma pessoa extremamente fechada. Era descrito como introspectivo e calado, que podia ter grandes oscilações de humor, mas que era capaz de gestos de afeto e carinho imprevistos — era bastante atencioso com novos escritores, como relata Daniel Galera na obra.
— Muitas vezes quando saíamos caminhando da Baleia, ele cumpria todo o trajeto em completo silêncio. Não fazia nenhuma pergunta para mim, não queria saber nada da minha vida. Qualquer pergunta que eu fazia da vida dele ou de coisas que pudessem interessar para nós, Noll respondia monossilábico ou com poucas palavras. E voltava a encerrar o assunto. Não porque ele fosse uma pessoa antipática ou arredia, mas era o jeito dele. Respondia com total objetividade, sem fazer digressões ou entrar em méritos ou julgamentos. Era um cara bem peculiar nesse aspecto — recorda Flávio.
Literatura e penúria
A biografia relata que Noll viveu boa parte de seus 70 anos em profunda precariedade material. Em um período no Rio, uma amiga descreve que o escritor só se alimentava de caldo Knorr. Flávio sublinha que Noll teve uma vida extremamente modesta em razão de sua opção pela literatura.
— Como esse cara não consegue ter uma vida digna em seu próprio país fazendo o que fez? Tendo dado uma contribuição tão grande para a cultura brasileira, não só aqui, mas no Exterior também — questiona o autor.
Flávio ressalta que Noll não é um escritor fácil ou de massas: era alguém que falava de coisas que a maioria evita. Era um autor que abordava a sexualidade de forma livre e aberta.
— Não era para um leitor mais acostumado com o feijão com arroz. Ele dava pouca atenção à trama em si e mais atenção nos conflitos internos dos personagens e, principalmente, à linguagem. O que tornava a literatura dele de difícil consumo. Talvez por isso ele fosse um autor pouco lembrado pelas autoridades constituídas ou pelo estabelecimento cultural do Estado — avalia Flávio.
Para o biógrafo, Noll merece ser lido por três motivos. O primeiro tem a ver com a literatura de altíssima qualidade produzida por ele.
— Acho que o Noll transcende a questão da literatura, ele é um dos artistas contemporâneos mais importantes do Brasil. Ele cria imagens fantasiosas de extrema beleza com a linguagem, tanto que já foi adaptado para teatro e cinema. A obra dele se presta a uma compreensão artística que transcende a literatura — analisa.
O segundo motivo para ler Noll, conforme Flávio, é o autoconhecimento que pode ser propiciado:
— Noll revela muito da nossa personalidade. Diz coisas que a gente não consegue dizer.
Por fim, Flávio lembra que muitas histórias de Noll foram ambientadas em Porto Alegre. Portanto, é um jeito de conhecer um pouco a Capital.
— A Porto Alegre do submundo, do centro sujo da cidade, que guarda personagens e famílias distópicas. Uma Porto Alegre que a gente não está acostumado. Ele valoriza muito os espaços que a gente não costuma valorizar, com seu poder de observação. Trazia do submerso desses espaços o tanto de vida que existe lá — finaliza.