Itamar Vieira Junior havia publicado apenas dois livros de contos quando finalizou seu primeiro romance. Olhou longe e mirou em Portugal, onde inscreveu Torto Arado em um importante prêmio literário, o Leya, do qual saiu vencedor em 2018. No Brasil, o livro chegou com o selo da Todavia após circular em terras portuguesas – e aqui arrebatou nada menos do que os prêmios Jabuti e Oceanos, em 2020, além de se tornar sucesso de vendas. Na trama, um povoado negro formado por pessoas que vivem em situação análoga à escravidão começa a entender a importância de ter direito à terra onde vive. Quem conta essa história são vozes femininas que, ao misturarem suas próprias dores à narrativa, apagam as demarcações do tempo e fazem o leitor entender que as lutas de ontem são as mesmas de hoje. Um dos convidados da atual edição da FestiPoa Literária, o autor baiano de 41 anos concedeu a seguinte entrevista por telefone.
Torto Arado é o livro do momento no país. O sucesso se deve mais ao feminismo encarnado nas personagens de Bibiana e Belonísia ou a temas como a luta de um povo negro por seu pedaço de terra?
Pude conversar com muita gente desde que o livro foi lançado, em 2019. Acho que há algo familiar em Torto Arado, seja pela história do Brasil, mesmo que nem todos tenham vivido aquela realidade, seja pela ligação com a terra. O Brasil se tornou um país urbano de 40 anos para cá, mas já foi predominantemente rural. Há muitas memórias afetivas de bisavós, avós e mesmo pais. Ouço falarem: “Na roça a gente acordava cedo, ia tirar o leite”. Há o retrato de um afeto que o Brasil tem pelo campo e pelas pessoas do campo.
Ao mesmo tempo, a relação das personagens pode ser interpretada como feminista, e estamos em um momento em que o feminismo é muito discutido.
Essas personagens foram inspiradas em mulheres que admiro, por exemplo as da minha família. Achava paradoxal, em uma sociedade patriarcal, atravessada pela machismo, uma mulher em situação de vulnerabilidade ocupar espaços de liderança e poder. As mulheres da minha família sofriam com o machismo dos maridos, da sociedade, e nem assim se encolhiam. Tinha algo de heroico nessa força. Depois, trabalhando com homens e mulheres do campo, vi a mesma coisa. Encontrei muitas mulheres fragilizadas, vulneráveis, que assumiam posição de liderança nas famílias e nas comunidades. Ao imaginar Torto Arado, só concebia uma história que tivesse as mulheres como protagonistas.
Belonísia talvez seja a personagem mais feminista do livro. Por que ela é justamente a que não fala?
A Belonísia tem um vínculo muito forte com a terra, com a natureza. É atravessada pelas questões da violência contra a mulher no campo, praticada por seus próprios companheiros. E encontra forças para ser determinada. Sai de casa porque quer sair de casa, quer seguir o Tobias, e depois descobre que a vida com ele não é tão boa assim, e não aparenta nenhum sentimento quando ele morre. Ao mesmo tempo, se engaja na solidariedade com outra mulher que também sofre violência doméstica. Entre elas surge um sentimento que eu não nomearia, porque a gente tem uma compreensão de mundo nossa, mas algumas coisas no campo não são a mesma coisa para quem vive na cidade. Há entre elas algo que talvez não tenha nome, que não possa ser enquadrado. É uma descoberta no toque, no afeto, coisas que não tiveram com seus companheiros.
Duvido das pessoas que dizem “não sou racista”, “não sou machista”. É difícil afirmar essas coisas sendo que estamos em uma sociedade machista e racista. A gente pode dizer que cuida para não reproduzir práticas racistas e machistas.
Quando Zeca Chapéu Grande se veste com roupas femininas para incorporar Iansã e fica com vergonha... Existe aí uma reflexão sobre masculinidade?
Eu vi homens como Zeca Chapéu Grande. Ele é o curandeiro do povo, líder espiritual e político, precisava incorporar entidades femininas também. Ele não recusava, compreendia que era importante, mas depois sentia vergonha. Tem um vínculo muito forte com a terra e com a natureza, mas ainda assim atravessado pelo machismo – como eu e como muitos homens. E isso serve para a gente refletir sobre a masculinidade tóxica da qual infelizmente não estamos livres. Duvido das pessoas que dizem “não sou racista”, “não sou machista”. É difícil afirmar essas coisas sendo que estamos em uma sociedade machista e racista. A gente pode dizer que cuida para não reproduzir práticas racistas e machistas. No caso do Zeca, é isso: ao mesmo tempo em que ele não se furtava, também sentia um pouco de vergonha porque ensinaram a ele que ser homem é não vestir saia, é não representar uma mulher.
Em vez de mandar para uma editora brasileira, você submeteu Torto Arado ao prêmio literário Leya, em Portugal. Por quê?
Eu não era um autor conhecido. Já tinha mandado livros para editoras e nunca obtive respostas. E decidi que não iria mandar Torto Arado para as editoras porque nem leem. Por coincidência, quando terminei o livro, fiz uma busca sobre concursos literários e o primeiro que apareceu foi o Prêmio Leya. Mas confesso que, depois de mandar, não tinha esperança. Só um brasileiro havia vencido esse prêmio até então. Seis meses depois, recebi o anúncio do prêmio. Torto Arado teve o privilégio de ser publicado numa grande editora em Portugal, e isso contribuiu para despertar o interesse pelo livro no Brasil.
Um livro sobre um povoado em situação análoga à escravidão teria chamado atenção no Brasil sem esse reconhecimento?
Tenho visto muitas obras que tratam esse tema. Isso é fruto de uma educação, de uma militância que começa em tempos imemoriais. Basta lembrar de Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto, como eles sofreram para publicar seus livros. E são livros imortais que a gente lê até hoje. Cada vez mais autores e autoras negros têm publicado seus livros, e nossa literatura tem se diversificado. Tudo é reflexo de um momento que não começou agora, mas há muitos anos, com as políticas de cotas, com o ingresso maciço de pessoas pobres e negras nas universidades. Essas pessoas saem, se formam, se qualificam demandando leituras que se aproximam do seu cotidiano. Se a gente pensar que 50% da população brasileira é negra e parda, é um contingente grande que procura se ver representado na TV, no audiovisual, nas artes e na literatura.
Você é geógrafo de formação e ainda trabalha no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Ainda. Não dá para viver de literatura (risos). E porque gosto de ter um pé no chão, de não ser só escritor. Se fosse, escreveria sobre meu entorno, minha vida, meu umbigo. E sair para trabalhar me coloca em contato com pessoas, com situações que viram literatura, alimentam minha imaginação.
Quanto do que você viveu como funcionário do Incra influenciou na ambientação de Torto Arado?
Não fosse a passagem pelo Incra, dificilmente o livro traria os detalhes que traz. Com exceção das personagens e de alguns eventos que são pura imaginação, as histórias que estão ali têm uma base real. Vi pessoas em situação de escravidão, pessoas que vivem como meeiros, que têm que dar muito da sua produção e ficam quase sem nada. Vi pessoas vivendo em casa de barro porque não podiam construir casa de alvenaria, já que a terra não pertencia a elas. Esse ambiente que é o palco de Torto Arado é real. Meu trabalho como servidor público me deu o mundo para que eu pudesse criar mundos.
As histórias que estão ali têm uma base real. Vi pessoas em situação de escravidão, pessoas que vivem como meeiros, que têm que dar muito da sua produção e ficam quase sem nada. Esse ambiente que é o palco de 'Torto Arado' é real.
Ainda existe escravidão no Brasil?
A escravidão nunca nos abandonou. Há inúmeras forças-tarefas que resgatam escravizados a todo momento, não apenas no campo, mas nas cidades, em fábricas têxteis. A escravidão não acabou em 1888. Pela lei, até pode ter acabado, mas até a lei ser aplicada de maneira efetiva demora, ainda mais porque não há políticas para mitigar o trabalho escravo. Tudo o que aconteceu no período da escravidão nos legou um problema estrutural imenso: a desigualdade entre brancos e negros, tanto de escolarização quanto de remuneração. Tudo isso é tributário daquele momento sombrio da nossa história, porque não enfrentamos esse problema de frente. Algo parecido acontece nos EUA e em países que também utilizaram o sistema escravagista em larga escala.
Belonísia diz que na cidade é preciso de dinheiro para tudo, enquanto no campo a terra oferece o que é necessário. Qual é a riqueza e qual é a pobreza da zona rural?
Nós, que somos bombardeamos por propagandas e necessidades que são criadas pelo mercado, se não conseguimos adquirir essas coisas nos percebemos inferiores, empobrecidos. Enquanto pessoas do campo me dizem: “Me ofereceram uma casa na cidade, mas o que vou fazer na cidade, vou a passeio?”. Estar a passeio significa dizer que não vai ter trabalho, porque o único trabalho que a pessoa pode realizar é o de agricultor. Precisa de uma cebola? Dinheiro. Precisa de um cheiro verde? Dinheiro. Se a terra dá de graça, por que precisa de dinheiro? Claro, também é uma visão romântica, porque muitos deles usam o excedente (do que colhem) para vender, já que precisam comprar roupa, material de limpeza. Eles não são autossuficientes. Mas, para eles, ter bastante é ter fartura na mesa, terra para cultivar, algum dinheiro para o remédio. É uma relação menos predatória. Para eles, ser feliz talvez seja regularizar a terra onde vivem para que possam chamá-la de sua.
Por que a reforma agrária é importante?
É importante não apenas para o Brasil, mas para qualquer país, e muitos, como França, México, Espanha e Portugal, já fizeram e mantêm esse modelo de pequenas e médias propriedades. A segurança alimentar de qualquer país passa pela produção de alimentos. O que a gente come, a cebola, os grãos, o arroz, o feijão, é produzido por pequenos e médios agricultores. O grande agricultor, o agronegócio, produz commodities para exportação. É bom para as finanças do país, mas não alimenta a população. Não comemos soja o dia todo. A soberania alimentar passa pela reforma agrária, pela distribuição de terra e o fomento à agricultura familiar.
O grande agricultor, o agronegócio, produz commodities para exportação. É bom para as finanças do país, mas não alimenta a população. Não comemos soja o dia todo. A soberania alimentar passa pela reforma agrária, pela distribuição de terra e o fomento à agricultura familiar.
Seu próximo livro trata do quê?
Sai no mês que vem, e é uma reunião de contos já publicados e outros inéditos. É uma oportunidade para o leitor de Torto Arado descobrir novos escritos. Também tenho trabalhado em um romance, sem previsão para conclui-lo, sem urgência.
Qual é o peso do sucesso na escrita desse próximo romance?
Nenhum. Às vezes eu recebo um prêmio e vai para a estante. De vez em quando olho e digo: “O livro chegou lá”. Mas, na hora de escrever o próximo, tenho que fingir que é o primeiro. Tenho que ser cercado das mesmas inseguranças, da mesma paixão. A sombra de outra história não pode pairar.
Você não era do meio literário, mas teve um batismo que poucos escritores conseguiram ter: conheceu Jorge Amado. Conta mais sobre esse encontro, por favor.
Uma das bibliotecas públicas que eu frequentava em Salvador ficava no bairro em que ele morava, o Rio Vermelho. Um dia, saí da biblioteca, passei em uma banca de revista. Tinha um livro do Jorge Amado e resolvi comprar. Sou tímido, mas também ousado. Tinha 17 anos. Bati na porta dele, uma senhora atendeu e eu perguntei: “Será que o seu Jorge poderia assinar esse livro para mim?”. Ela pediu licença, voltou e falou: “Entre, Dona Zélia quer lhe conhecer”. Ali estava o Jorge, e a Zélia (Gattai, escritora e esposa de Jorge Amado) perguntou se eu já tinha lido algum livro dela, eu disse que não e ela tirou da estante Anarquistas, Graças a Deus. Falei que tinha vontade de escrever, e eles me incentivaram. Quando saí de lá, fiquei pensando: “Será que foi um sonho?”. Eles me deixaram a impressão de uma generosidade imensa. Brinco que pedi a benção para ser escritor, e eles me deram.
O Roda Viva, programa do qual você participou recentemente, tem tomado cuidado para ter entrevistadores negros quando o entrevistado é negro. No entanto, a bancada volta a ficar branca quando o entrevistado é branco. O que você pensa sobre isso?
Há pessoas brancas escrevendo sobre autores negros, há pessoas brancas também falando sobre política e economia. Por que não vemos mais pessoas negras ocupando esses espaços? Ainda bem que a gente tem se feito essa pergunta, mostra que estamos atentos. Recentemente teve uma polêmica na Holanda, sobre a tradução de uma autora negra, a Amanda Gorman. Seus livros seriam traduzidos por uma escritora branca holandesa, e isso gerou um imenso debate: uma pessoa branca pode traduzir uma pessoa negra? Acho que isso não é tão importante quanto ter tradutores negros fazendo de tudo, traduzindo George Orwell, Dostoiévski. A gente precisa de representatividade, e não se fechar em nichos.
Há pessoas brancas escrevendo sobre autores negros, há pessoas brancas também falando sobre política e economia. Por que não vemos mais pessoas negras ocupando esses espaços? Ainda bem que a gente tem se feito essa pergunta, mostra que estamos atentos.
Como um menino negro, que veio da periferia de Salvador, se sente ao ser lido e admirado?
Sinto orgulho, porque durante um tempo procurei na literatura contemporânea referências que pudessem falar sobre a minha origem e poucas vezes encontrei. Quando vejo um autor com a mesma origem que a minha na lista de mais vendidos, quando vejo personagens como Bibiana e Belonísia conquistando o coração dos leitores, sinto que há esperança. A literatura que traz o protagonismo dos negros não pertence a um nicho. Há um interesse de todos nós pelas histórias que compartilham humanidade. Quando Torto Arado ganhou o Jabuti, fiz uma pesquisa para ver quantos livros com personagens negros tinham vencido o prêmio nos últimos 20 anos, e não encontrei nenhum. A gente conseguiu apresentar a nossa literatura, e há muito mais por vir.
Em um Brasil que nega que houve escravidão, ditadura e até pandemia, o sucesso de Torto Arado é sinal de esperança?
Torto Arado toca numa ferida nunca fechada, da escravidão e do racismo. Vejo pessoas de diversas origens lendo o livro e se conectando com a história. Isso mostra que não perdemos nossa humanidade, por mais difícil que esteja sendo atravessar esse momento de negação. É difícil manter o otimismo. Mas, se não nos apegarmos à esperança, não resta nada. A humanidade já viveu momentos dolorosos, mas, pela persistência e pelo engajamento das pessoas em fazer desse lugar um mundo melhor, a gente pôde superá-los. É preciso ter uma esperança que não é passiva, em que você senta e espera que as coisas melhorem. A gente precisa ser a transformação que queremos ver no mundo, já disse Gandhi. Precisamos ter essa consciência.
Na FestiPoa Literária
- Itamar Vieira Junior é uma das atrações da FestiPoa Literária, que começou nesta quinta-feira (13/5) e prossegue até segunda (17) com diversas mesas-redondas online.
- O autor de Torto Arado vai falar às 18h de segunda na mesa “Escrever é voltar para casa” ao lado de Micheliny Verunschk, com mediação de Reginaldo Pujol Filho.
- A 13ª edição do evento tem, entre outros convidados, Conceição Evaristo, Antônio Pitanga, Criolo, Teresa Cristina e os homenageados Sérgio Vaz e Ana Maria Gonçalves. Veja a programação completa em facebook.com/festipoa.